Por Rodrigo Carelli
Em decisão histórica, que põe fim à questão do trabalho em plataforma nesse importante país, a Suprema Corte do Reino Unido confirma por unanimidade as decisões das três instâncias inferiores e reconhece que os motoristas da Uber são “workers”, e não trabalhadores autônomos, como queria a empresa. A decisão segue o caminho traçado pelas cortes máximas da Alemanha, França, Espanha e Itália,
A decisão enfatizou cinco elementos: 1. A Uber estabelece o preço do serviço; 2. os termos do contrato são impostos pela empresa; 3. A Uber controla o trabalhador que está conectado à plataforma, como monitoramento da aceitação de pedidos; 4. Uber exerce controle significativo sobre como os motoristas prestam serviços, como o sistema de notas; 5. A Uber restringe a comunicação entre motoristas e passageiros, impedindo que eles desenvolvam qualquer relacionamento além daquela corrida específica.
A corte utilizou a teoria do “Purposive Approach”, como enfatizada por Guy Davidov, citado expressamente na decisão, no sentido de que a interpretação de uma lei deve ser realizada a partir dos seus objetivos e o resultado interpretativo deve ser aquele que melhores efeitos dá a essas funções. A corte disse que a função geral do direito do trabalho, sem qualquer dúvida, “é proteger trabalhadores vulneráveis de serem pagos baixos salários pelo trabalho que eles façam, que sejam obrigados a fazer jornadas excessivas ou estarem sujeitos a outras formas de tratamento injusto”. Para os Lords e para a Lady que compõem a corte, o paradigma para quem o direito do trabalho foi desenhado é o empregado, mas que foi incluído também nessa proteção os “workers”, cujos requisitos são menos exigentes que os do primeiro caso. Isso se deu porque o objetivo da lei foi “estender os benefícios da proteção a trabalhadores que tenham a mesma necessidade desse tipo de proteção que os os empregados em sentido estrito – trabalhadores que são vistos como passíveis, qualquer que seja seu status formal, de serem obrigados a fazer jornada excessiva (ou (…) sofrerem deduções ilegais dos seus ganhos ou ser pago muito pouco).”
Para a Suprema Corte, assim, “a razão pela qual empregados são entendidos como necessitados dessa proteção é que eles estão em uma posição subordinada ou dependente em relação a seus empregadores: o objetivo da lei é estender a proteção para trabalhadores que estão, substancial ou economicamente, na mesma posição.”
Assim, a correspondência da subordinação e dependência dos empregados nos “workers” (trabalhadores), que os coloca na mesma posição dos empregados, é “o controle exercido pelo empregador sobre suas condições de trabalho e remuneração”. Essas relações não devem ser deixadas para o contrato resolver, necessitando atuação decisiva da lei.
Por isso, para encontrar os elementos da definição do status do trabalhador não deve ser buscado o nome da relação dado pelo contrato, o que seria “restabelecer os males que a legislação foi criada para evitar. É o próprio fato que um empregador está frequentemente em posição de ditar tais termos contratuais e que o indivíduo que executa o trabalho tem pouca ou nenhuma capacidade de influenciar esses termos que dá origem à necessidade de proteção legal em primeiro lugar”. Assim, a busca dos elementos deve ser realizada na realidade, e não no contrato, que deve ser comparado com a situação objetiva e as circunstâncias do trabalho, conforme a jurisprudência da Corte de Justiça da União Europeia.
Os termos do contrato foram escritos pelos advogados da Uber e apresentado aos motoristas, que só tinham a opção de aceitar se quisessem utilizar o aplicativo da empresa. A Corte afirmou que é improvável que muitos motoristas tenham sequer lido esses termos, e mesmo quem leu, não deve ter entendido seu significado legal. Não havia qualquer possibilidade de negociar seu conteúdo.
A Suprema Corte salientou que a lei diz que é nula de pleno direito qualquer previsão contratual que limite ou exclua a aplicação do direito do trabalho ou que impeça alguém a levar à Justiça ações para a defesa desses direitos. Desta forma, entendeu como nulos todos os dispositivos previstos nos termos de uso da Uber que tentavam dissimular e impedir a aplicação da lei.
Passando a observar o grau de controle exercido pela Uber, de início, a Corte afastou que o fato de uma pessoa ser livre para trabalhar ou não não é incompatível com o direito do trabalho, seja para considerá-lo como empregado (“employee”) ou trabalhador (“worker”). Deu o exemplo dos trabalhadores intermitentes ou safristas no campo. O que deve ser observado são as condições nos momentos em que estejam trabalhando e não quando não estão.
Aqui a decisão destacou os cinco fatores principais citados acima:
- “Primeiro e de maior importância, a remuneração paga aos motorista para seu trabalho é fixada pela Uber e os trabalhadores não têm qualquer voz em relação a isso (exceto escolher quando e quanto trabalhar).” O quanto de “taxa de serviço” cobrada pela Uber dos motoristas também é estabelecido pela empresa. A tarifa do serviço também é fixada unilateralmente pela Uber, salientando a decisão que havia a possibilidade de ser cobrado menos do que a tarifa estipulada, o que não ajudava em nada os trabalhadores, pois tal desconto sairia de seus próprios bolsos. Foi ressaltando que o controle sobre a remuneração era tal que a Uber decidia discricionariamente quando ou não deixar de cobrar de cliente que reclamava do serviço do trabalhador.
- Os termos contratuais são inteiramente ditados pela Uber, inclusive em relação ao serviço de transporte de passageiros, sendo que os trabalhadores não têm qualquer possibilidade de negociação.
- Embora os trabalhadores tinham a liberdade de escolher quando e onde trabalhar, uma vez que o motorista se conectasse ao aplicativo a sua escolha de aceitar pedidos de corrida estava limitada pela Uber. Segundo a Corte, a Uber exerce controle sobre a aceitação das corridas de duas formas: a) controlando e restringindo a informação fornecida ao trabalhador, pois o motorista não é informado sobre o destino do passageiro até pegá-lo, restringindo a possibilidade de negar corridas para destinos que não deseje ir por algum motivo; b) monitorando a taxa de aceitação e cancelamento das corridas, e realizando punições a partir dela, o que coloca os motoristas sob a subordinação à Uber.
- A Uber exerce um grau considerável de controle na forma de prestação de serviços. Afirma a Corte que, se os motoristas terem seus próprios carros possa significar mais controle do que a maioria dos empregados sobre seu equipamento de trabalho, a Uber estipula os tipos de carro que podem ser usados. Porém, a Corte ressalta que “Mais importante, a tecnologia que é imprescindível ao serviço é totalmente propriedade da Uber e por ela controlada e é usada como forma de exercitar controle sobre os trabalhadores.” A Suprema Corte entendeu que um método potente de controle é o uso do sistema de avaliação pelo qual passageiros dão nota ao motorista a cada viagem. Neste sistema, se o motorista não mantém uma média especificada pela Uber pode receber advertência e até resultar no término da relação com a Uber. O Tribunal alerta que o sistema da Uber se diferencia daqueles comumente encontrados nas plataformas digitais, pois a maior parte serve somente para incentivar o fornecedor a ganhar altas notas de satisfação dos clientes para atrair negócios futuros. O da Uber seria materialmente diferente, pois não há escolha de motoristas pelos clientes da Uber a partir das notas; os passageiros não têm escolha de motoristas com altos preços para motoristas com altas notas; o sistema de avaliação é utilizado pela Uber como pura ferramenta interna para gerenciar performance e uma base para tomar decisões finais em casos que trabalhadores não atingem os níveis de performance estabelecidos pela Uber. Afirma a decisão que “isso é uma clássica forma de subordinação que é característica da relação de emprego”.
- O último fator ressaltado é que a Uber limita a comunicação entre passageiro e motorista ao mínimo necessário para realizar uma viagem específica e toma atitudes para impedir que motoristas estabeleçam qualquer relação com um passageiro além daquela viagem. O recibo que fica com o motorista nunca é apresentado ao passageiro e esse documento só traz o primeiro nome do cliente e mais nada. Os motoristas são expressamente proibidos de trocar contatos com o passageiro. Isso criaria uma situação que impediria o motorista a oferecer um serviço diferenciado para melhor sua posição econômica a partir de suas habilidades profissionais ou empreendedoras. Repetindo o que já se havia dito desde a primeira decisão, “na prática, o único modo em que eles podem aumentar sua remuneração é trabalhando mais horas enquanto atinge as medidas de desempenho da Uber”.
A Suprema Corte afirma que os serviços são prestados de maneira padronizada pela Uber, e que os motoristas são percebidos pelos clientes como intercambiáveis, e não como motoristas individuais.
Há na decisão interessante comparação com plataforma digital de busca de quarto em hotéis: os quartos de hotéis não são padronizados pela plataforma, o nível de serviço é estipulado pelo fornecedor; o preço do serviço é estipulado pelo hotel; as avaliações são indicativos para os clientes escolherem o hotel e o quarto e não é usada para gerenciamento de performances; não há restrição de comunicação entre o hotel e o cliente, não havendo impedimento de que façam negócio diretamente no futuro. Tudo isso, segundo a Corte, indica que os fornecedores estão em concorrência uns com os outros para atrair clientes. Tudo isso, para a Corte, é completamente diferente do que acontece com a Uber.
Outro ponto importante da decisão é que foi considerado tempo de trabalho todo o tempo em que o motorista permanece conectado à plataforma, à disposição para trabalhar. A decisão afirmou que, caso o trabalhador esteja logado ao mesmo tempo em várias plataformas, isso deve ser analisado em cada caso e verificado o grau de envolvimento em cada plataforma.
Essa decisão é importante porque ela reconstrói os objetivos do direito do trabalho. Ela recompõe o sistema abalado por ficções que tentam dissimular algo que todos conseguem ver na realidade: a necessidade desesperada dos trabalhadores em plataforma de proteção estatal do direito do trabalho.
Reconstituir os objetivos do direito do trabalho é essencial neste momento de ataque nuclear que estamos sofrendo, sendo a decisão da Suprema Corte do Reino Unido uma aula nesse sentido, como já havia sido uma aula de Estado Democrático de Direito o julgamento do caso da ilegalidade de cobrança das custas na Justiça do Trabalho.
Percebe-se pela decisão que se houvesse o pedido de reconhecimento da condição de empregado seria concedido, pois em várias vezes é reconhecida expressamente a subordinação dos motoristas à Uber. O pedido foi realizado em relação ao “worker” porque seria estrategicamente mais interessante, pois teria mais chances de ter êxito e os direitos designados a essa categoria são quase os mesmos. Eles têm direito a salário mínimo, proteção contra descontos ilegais, feriados pagos, descansos, carga máxima de 48 horas semanas, proteção contra dispensa discriminatória, licença saúde, paternidade, adoção e licença parental compartilhada.
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Agradecemos ao Professor Pepe Chaves por ter disponibilizado a íntegra da decisão, que pode ser lida aqui: https://www.supremecourt.uk/cases/docs/uksc-2019-0029-judgment.pdf
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