O APOCALIPSE DOS TRABALHADORES NO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL

A morte dos direitos sociais tem data marcada e faz parte de política do STF que não existe em nenhum outro lugar do mundo

Por Rodrigo Carelli, Coordenador do Trab21, Professor da UFRJ e Procurador do Trabalho

O fim está perto. Ao contrário do que fazem algumas seitas ou religiões, que têm o Armagedão como dogma e base da crença, o alerta para o fim próximo dos direitos sociais, tal como acontece com as consequências das mudanças climáticas do Antropoceno, tem boa base científica. O ocaso em até data marcada, quando provavelmente a Suprema Corte dará mais um passo, talvez fatal e definitivo, ao assassinato à proteção social prevista na Constituição da República e prometida pelo Brasil nos pactos internacionais de direitos humanos firmados.

Está marcado para o dia 8 de fevereiro de 2024 julgamento pelo Plenário do Supremo Tribunal Federal, com o objetivo de dizer, provavelmente com força vinculante aos demais juízes do país, que trabalhadores de plataformas digitais não são empregados e, por isso, não têm direitos. Entretanto, devo alertar sobre a possibilidade de gravidade ainda maior: segundo notícias, há uma probabilidade grande de os ministros da Suprema Corte irem mais além e impedirem o reconhecimento da condição de empregado quando haja qualquer contrato civil formalizado. Seria a inversão completa do que temos hoje: surgiria por criação e obra da Suprema Corte o princípio da primazia do formal sobre a realidade.

A política que o STF quer implementar no Brasil não tem paralelo no mundo. Não há um só país civilizado em que o Poder Judiciário é impedido de verificar a condição de empregado na realidade. Ao contrário, a reclassificação de contratos civis em contratos de emprego é algo extremamente comum nos Estados Unidos, Espanha, Inglaterra, Holanda, Alemanha, Suíça etc. Isso é previsto expressamente pela Recomendação nº 198 da Organização Internacional do Trabalho, que determina que a verificação da realidade se dá nos fatos (item 9) e não no arranjo contratual e que os Estados devem envidar esforços para impedir que os contratos civis sejam utilizados para mascarar verdadeiras relações de emprego (item 4). O princípio da primazia da realidade também é previsto pela jurisprudência vinculante da Corte Interamericana de Direitos Humanos.

É importante destacar que houve tentativa recente de se colocar um dispositivo na lei francesa que impedisse os juízes de verificarem a existência do vínculo empregatício no caso de plataformas digitais. O Conselho Constitucional francês entendeu a norma inconstitucional, afirmando que nem mesmo o  legislador pode impedir um juiz da República de conhecer os fatos apresentados por um cidadão e decidir conforme o direito, inclusive reconhecendo vínculo empregatício a partir da realidade e não da forma.

Ao fim e ao cabo, a nossa Suprema Corte está indo em sentido completamente contrário ao de seu homólogo europeu: aqui temos a negação explícita de acesso à Justiça do Trabalho e aos direitos fundamentais previstos na Constituição e direitos humanos em tratados internacionais a partir da forma.

O que acontece é claro caso de negacionismo científico. Da mesma forma que os negacionistas do clima, os negacionistas do direito do trabalho não sabem ou não querem saber das consequências de seus atos, e não raras vezes têm raiva de quem sabe. Os cientistas jurídicos, sejam eles constitucionalistas ou laboralistas, alertam, apreensivos, sobre a cegueira que vige na Suprema Corte, mostram o que acontece ao redor do mundo, mas não querem olhar para cima.

Os constitucionalistas se perguntam: onde está a questão constitucional a ser dirimida nesses casos que vêm sendo julgados? Afirmam os ministros do STF: a Suprema Corte já decidiu que são constitucionais outras formas de arranjo contratual que não a relação de emprego. Ora, mas quem é contra tal afirmação? Não houve um só julgado da Justiça do Trabalho que eu tenha conhecimento que tenha passado perto de contrariar tal premissa. Muito ao contrário, em toda declaração de fraude há o pressuposto da existência de um contrato civil em tese válido que não se observa naquele caso concreto. Quando uma decisão judicial diz que o trabalhador foi contratado fraudulentamente por meio de uma pessoa jurídica ela não está negando a possibilidade de contratação de pessoa jurídica, mas sim dizendo que ali, naquele caso, o arranjo contratual foi somente utilizado para mascarar a verdadeira relação jurídica. Da mesma forma, reconhecer a condição de empregado de determinada plataforma digital, em um caso concreto, a partir da realidade, verificando os requisitos da relação de emprego, não é negar a possibilidade que em outras plataformas digitais, ou até na mesma, haja a contratação de autônomos.

Qual artigo da Constituição da República permite afirmar, de antemão, a inexistência da relação de emprego em um caso concreto? Ou pior ainda: qual dispositivo entrega, de maneira geral e abstrata, ao Supremo Tribunal a competência de afirmar que não existe uma relação de emprego de trabalhadores com certo tipo de empresas? Não há, com exceção da carta super trunfo, que vence sempre os direitos sociais: o princípio da liberdade econômica ou livre iniciativa. Mas aí é uma dimensão de terraplanismo jurídico que cabe discutir em outro texto.

Já os laboralistas, como os ecologistas em relação ao clima, alertam para o apocalipse. Se o pior cenário realmente vier, não sobrará mais nada no direito do trabalho. Tanto a Constituição da República, que trata os direitos trabalhistas expressamente como direitos fundamentais, quanto os tratados de direitos humanos assinados pelo Brasil, que trazem uma série grande de direitos trabalhistas, serão completamente esvaziados. Letra mortíssima e enterrada. Quando um mero contrato formal, seja ele um pedaço de papel assinado, ou um clique no computador, puder retirar a condição de empregado, a relação de emprego praticamente não existirá mais. O direito do trabalho, como regulador de concorrência leal, deixando de ser patamar de competição entre empresas, terá se tornado um fardo que impedirá até os empresários humanistas e conscientes de cumprir os direitos sociais.

Assim, haverá uma migração em massa de trabalhadores para contratos civis sem direitos. Consequência lógica será a queda brusca na arrecadação e o colapso próximo do sistema de seguridade social. A renda do trabalhador cairá rapidamente com a ausência de patamares salariais legais e negociados pelos sindicatos e a possibilidade de exploração de horas extraordinárias de forma livre. O trabalho escravo e os acidentes de trabalho grassarão às escondidas, atrás do apagão nas estatísticas. Em breve toda a sociedade sentirá as consequências da precarização total das relações de trabalho. E o Estado Brasileiro não terá atendido aos compromissos assumidos perante a comunidade internacional nos tratados.

O Juízo Final será trazido pelo Olimpo judiciário brasileiro. A maior probabilidade é de que os trabalhadores brasileiros sejam condenados a não terem acesso à Justiça do Trabalho e a não terem direitos. Os direitos sociais terão sido exterminados pela Suprema Corte, suposta guardiã dos direitos fundamentais. A única redenção possível será levar o caso para as cortes internacionais de direitos humanos e apontar, com dados científicos, esse massacre que está em curso no Brasil.

4 comentários em “O APOCALIPSE DOS TRABALHADORES NO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL”

  1. O que ocorreu comigo é uma vergonha ainda maior, o Ministro Gilmar Mendes deu a decisão falando que não cabe Reclamação Constitucional mantendo assim o vínculo trabalhista que ganhei no TRT3 contra um escritório de advocacia e em seguida após receber apoio público desse escritório parte autora na Reclamação Constitucional, o ministro Gilmar Mendes voltou atrás na decisão e retirou o vínculo trabalhista deferido. A fundamentação é a mais ordinária e mentirosa, pois fala que é caso de terceirização e por isso eu não tenho direito ao vínculo trabalhista. Na minha ação não tem uma palavra sequer falando de terceirização. Na minha ação foi declarada a fraude na utilização do contrato de advogado associado. Como o STF pode alterar a decisão que declarou o vínculo trabalhista sob o fundamento na fraude na contratação por contrato de associado. Agora é assim, se tiver contrato de associado não importa mais nada, a relação pode ter todos os elementos da relação empregatícia que não importa. Se for assim, os escritórios podem fazer o contrato de associado e tratar o advogado como escravo. Até a relação análoga a de escravo está permitida pelo STF, é só o escritório fazer um contrato de associado.

    Tenho vergonha de ser brasileira.

    reclamação Constitucional 55.769

    Curtir

Deixe um comentário