STF E LULA NA CONTRAMÃO DA CIVILIZAÇÃO: A COMUNIDADE EUROPEIA ENTRA EM ACORDO PARA A PROTEÇÃO REAL DOS TRABALHADORES EM PLATAFORMA

Rodrigo Carelli, coordenador do Trab21, professor de Direito do Trabalho da UFRJ

A Comunidade Europeia, superando impasses e oposições, chegou a um acordo e vai proteger os trabalhadores em plataforma, não somente na busca da correta classificação como empregados, bem como protegendo todos os que trabalham nas plataformas, empregados ou autônomos, em relação ao uso de inteligência artificial, dados e algoritmos. Esses são os dois eixos da regulação: combate às fraudes pelo uso de falsos contratos civis e proteção geral em face do uso de algoritmos e inteligência artificial. 

Nada poderia ser mais contrário ao que tem sido feito no Brasil, que está indo no sentido da destruição do direito do trabalho, tanto em relação ao que vem sendo feito no STF, quanto em relação ao projeto específico para motoristas em plataformas proposto pelo governo Lula que expressamente nega qualquer via de reconhecimento dos direitos trabalhistas fundamentais previstos na Constituição. Os dois projetos políticos, o europeu e o brasileiro, vão em sentidos completamente opostos: enquanto um pode ser visto como o mais avançado texto legal até agora para proteção dos trabalhadores em plataformas até o momento, o outro pode ostentar o título de vanguarda do atraso. Se o projeto europeu acordado busca o reconhecimento de direitos pela relação empregatícia, e a expansão dos direitos de proteção face à gestão algorítmica para os chamados independentes, o projeto brasileiro tem como ponto principal a negação do direito do trabalho e a concessão de meras migalhas, passando ao largo da regulação da inteligência artificial e do algoritmo.

A diretiva europeia pretende garantir direitos mínimos (de verdade) a quem trabalha para plataformas digitais e que, segundo os fatos, tenha um contrato de trabalho ou relação de trabalho como definida na lei ou nos contratos coletivos, levando-se sempre em consideração a jurisprudência da corte de justiça da comunidade europeia.

Ao contrário do projeto de lei brasileiro, a futura norma europeia traz conceitos consentâneos com a realidade. Não denomina ninguém de empresa operadora de aplicativo ou algo que o valha. A diretiva busca a realidade nos fatos. E é isso que é importante comparar com o Brasil, que vive um momento de terraplanismo jurídico, em que o STF pretende impor a prevalência do contrato sobre a realidade: o parágrafo segundo do art. 4º da diretiva dispõe que “a determinação da existência de uma relação de trabalho se baseia principalmente sobre os fatos relativos à efetiva execução do trabalho, incluído o uso de sistemas de decisão ou de monitoramento automatizados na organização do trabalho mediante plataformas digitais, independentemente do modo o qual a relação é classificada em um eventual arranjo contratual entre as partes interessadas”. Isso não é grande novidade, pois é justamente o que está disposto no parágrafo único do art. 6º  e no art. 9º da CLT, mas contra o negacionismo temos que sempre dizer “olhe para cima!” O projeto de lei do governo, denominado “PL da Uber” ou “projeto Nem-Nem”, vai no mesmo sentido da negação: no art. 5º, apesar de prever todas as formas de controle possíveis por meios automatizados, reconhece o poder de controle das empresas somente para o fim de negar a verdadeira condição de empregados. É surreal, mas é bem real. A exposição de motivos da diretiva explica bem direitinho para o STF e para o Lula o que está em jogo: “O controle e a direção podem assumir diferentes formas, tendo em conta que o modelo de economia das plataformas está em constante evolução; por exemplo, a plataforma de trabalho digital pode exercer a direção e o controle não só por meios diretos, mas também através da aplicação de sanções ou outras formas de tratamento desfavorável ou pressão.”

Para isso, vigora na norma europeia “o princípio da primazia dos fatos, segundo o qual a determinação de existência a existência de uma relação de trabalho se deverá basear principalmente nos fatos relacionados com a execução efetiva do trabalho, incluindo a sua remuneração, e não na descrição da relação de trabalho pelas partes, em conformidade com a Recomendação n.º 198 da OIT sobre a Relação de Trabalho (2006), é particularmente pertinentes para o trabalho nas plataformas digitais, em que as condições contratuais são frequentemente determinadas unilateralmente por uma das partes.” Justamente o contrário do que preveem as decisões do STF e o projeto de lei complementar do governo, que buscam criar uma ficção de trabalho autônomo só no papel. No todo, o que se defende no Brasil é um faz de conta: faz de conta que dá algum direito e  faz de conta que o trabalhador é um autônomo.

O parágrafo primeiro do art. 5º da diretiva preverá a presunção relativa de relação de emprego sempre que a “relação contratual entre uma plataforma de trabalho digital e uma pessoa que desenvolve seu trabalho mediante tal plataforma seja uma relação de emprego quando se encontrarem fatos que indicam um poder de controle ou direção, conformemente ao direito nacional e à jurisprudência da corte de Justiça.” O ônus de refutar a presunção legal é da plataforma, cabendo-lhe demonstrar que não existem na realidade os elementos indicadores da relação de emprego. O parágrafo segundo ainda prevê que a presunção legal deverá servir para facilitar processualmente os trabalhadores no reconhecimento judicial de sua condição, que é um direito instrumental reconhecido expressamente na diretiva no parágrafo quarto do art. 5º da diretiva, bem ao revés do sistema que o STF vem implantando no Brasil, que pretende evitar que os trabalhadores tenham direito de desafiar a natureza contratual na Justiça do Trabalho. Assim, a presunção legal é garantia de acesso à justiça substancial dos trabalhadores.

Bem diferente do caso brasileiro, as autoridades europeias estão preocupadas com a gestão algorítmica do trabalho realizada pelas empresas. O STF ignora esse fato, que é quase constitutivo do século XXI, e o projeto de lei do Lula chega às raias do absurdo de legitimar e garantir esse poder sem qualquer sem qualquer controle ou contrapartida. Na lei brasileira, em seu art. 5º, há a listagem de todo tipo de poder empregatício realizado pelas empresas, diretivo, disciplinar e punitivo, inclusive por meio de gestão algorítmica, afirmando-se que todo esse poder é permitido às empresas sem necessitar que os trabalhadores tenham direitos trabalhistas. A diretiva avança na proteção de dados pessoais na gestão algorítmica para além da norma europeia de proteção de dados para os cidadãos em geral. E mais: a proteção em face dos algoritmos será para todos os trabalhadores, sejam considerados empregados ou não. Isso é que é realmente autonomia com direitos. Essa sim poderia ser enviada ao Biden e ao Lula. 

A diretiva proíbe que as empresas, por meio de sistemas automatizados de monitoramento ou tomada de decisões tratar dados pessoais sobre o estado emocional ou psicológico dos trabalhadores, tratar dados pessoais relacionados com conversas privadas ou com colegas ou representantes dos trabalhadores; recolher dados pessoais fora do âmbito do trabalho; e tratar dados pessoais para prever o exercício de direitos fundamentais, principalmente os sociais, como liberdade sindical, direito de negociação ou ações coletivas ou direito de informação e consulta (art. 7º). As plataformas também estão proibidas de tratar dados para inferir raça ou etnia, condição de migrante, convicções religiosas ou filosóficas, deficiência ou estado de saúde, estado emocional ou psicológico, filiação sindical, vida ou orientação sexual. Da mesma forma, é proibido o tratamento de dados biométricos para compará-los com outros bancos de dados.

O projeto de lei brasileiro dos motoristas da plataforma, apesar de prever o princípio da transparência, acaba reduzindo-o às informações a posteriori relativas ao cálculo da remuneração, em uma forma de contracheque discriminado. No projeto europeu, a transparência é realmente levada a sério. É exigido que as empresas que se utilizam de sistemas automatizados de monitoramento ou tomada de decisões informem aos trabalhadores, aos sindicatos e às autoridades o uso desses sistemas (art. 9º, 1), todos os tipos de decisão que são tomados pelos sistemas, inclusive aqueles que não se relacionam significativamente com o trabalho, e, sobre o monitoramento, quais categorias de dados e ações que são monitorados, supervisionados ou avaliados por esses sistemas, inclusive as avaliações pelos destinatários do serviço, qual o objetivo do monitoramento e a forma como deverá ser atingido, e os destinatários dos dados pessoais tratados por esse sistema e qualquer transmissão ou transferência desses dados pessoais, inclusive se se tratar de um mesmo grupo empresarial.

Será obrigatória a supervisão humana dos sistemas automatizados, com participação dos representantes dos trabalhadores e, de dois em dois anos, devem realizar uma avaliação do impacto das decisões tomadas em sistema automatizado nas condições de trabalho e na igualdade de tratamento de trabalho (art. 10, 1). Caso o resultado da avaliação seja a verificação de um alto risco, a empresa é obrigada a tomar todas as medidas necessárias, incluindo a modificação do algoritmo, para evitar tais problemas no futuro. Todas essas informações devem ser disponibilizadas aos trabalhadores e às autoridades competentes. Toda decisão de restringir, suspender ou pôr termo à relação contratual deve ser tomada por um ser humano. (art. 10, 5).

A diretiva prevê que os trabalhadores têm o direito de obter, sem demora injustificada, uma explicação sobre qualquer decisão tomada ou apoiada por um sistema automatizado, com linguagem clara e simples, podendo pedir a sua revisão. Se a decisão violar algum direito, deverá ser retificada pela empresa em até duas semanas. Caso não seja possível, deverá oferecer uma indenização ao trabalhador pelos danos sofridos. Em qualquer caso, deverá modificar o algoritmo para que as lesões não aconteçam. A diretiva também se preocupa com o impacto do algoritmo na saúde dos trabalhadores, que deve ser avaliado em relação aos riscos de acidentes de trabalho, psicossociais e ergonômicos e introduzir medidas de prevenção e proteção adequadas (art. 12) . As empresas estão proibidas de utilizar os sistemas automatizados para exercer pressão indevida sobre os trabalhadores ou que ponham em risco a segurança e a saúde física e mental dos trabalhadores. 

Os Estados também receberão das plataformas todo tipo de informação, como o número de pessoas que trabalham, por nível de atividade, situação contratual ou estatuto profissional e os termos e condições gerais fixados, além de informações sobre as horas trabalhadas e os intermediários com quem as plataformas mantêm relação contratual. No caso brasileiro, há previsão de fornecimento de informações à Receita Federal e à inspeção do trabalho, mas sem a descrição de quais dados terão que ser fornecidos.

O art. 21 da diretiva ordena que os tribunais nacionais e as autoridades competentes podem exigir das plataformas todos os elementos de prova pertinentes que estejam sob seu controle, inclusive elementos de prova que contenham informações confidenciais, devendo proteger essas informações. Isso evitaria certa jurisprudência no Brasil que impede que juízes tenham acesso aos dados do algoritmo.

Os estados-membros terão dois anos para inserirem em suas legislações nacionais os dispositivos da diretiva.

Assim, estamos perante dois tipos opostos de regulação: a brasileira, com os olhos grudados no retrovisor, tentando a volta para um passado longínquo de desproteção e exploração total; a europeia, com os olhos fixos no presente, debruçando-se sobre as questões espinhosas de nosso tempo com mecanismos adequados. Percebe-se bem que são dois projetos de futuro bem diferentes.O Brasil, seguindo sua sina de país colonizado (ou autocolonizado) e a Europa lutando para manter as conquistas civilizatórias. Ao que parece, duas palavras podem definir projetos tão díspares: barbárie e civilização.

Publicado originalmente no Jota: https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/stf-e-lula-na-contramao-da-civilizacao-15032024

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