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Justiça espanhola entende como ilegal a terceirização da Cabify

Rodrigo Carelli, Coordenador do Trab21, Professor de Direito do Trabalho da Universidade Federal do Rio de Janeiro

Duas decisões no mesmo dia demonstram a distância que há entre o Supremo Tribunal Federal e as cortes europeias.

A notícia de cá dá conta de que a primeira turma da Suprema Corte negou vínculo empregatício entre a Rappi e um entregador, que havia sido reconhecido pela Justiça do Trabalho até no Tribunal Superior do Trabalho.

A notícia da parte mais civilizada do mundo vai em sentido completamente inverso na proteção aos trabalhadores de plataforma digital. A Cabify, na Espanha, tem seus motoristas contratados como empregados por empresas, que cedem esses trabalhadores para realizar o serviço para a plataforma. Para o cliente é a mesma experiência, mas os trabalhadores são reconhecidos como empregados, mas das empresas terceirizadas, não da contratante. O Tribunal Social de Valencia entendeu que se trata de “cesión ilegal de trabajadores”, ou seja, algo como mero fornecimento de mão de obra, e não uma verdadeira terceirização e manteve a autuação realizada pela Inspeção do Trabalho. Os argumentos da decisão foram: 1) que a empresa, como a Uber, é um serviço de transporte, e não mera intermediação digital; 2) que a propriedade dos meios de produção essenciais, a plataforma digital, é de propriedade da Cabify, pela qual todo o trabalho é entregue aos motoristas, sem a qual o serviço não é realizado, ressaltando que nas regras de uso há expressamente a proibição de oferecimento de transporte diretamente aos clientes da Cabify; 3) foi verificado o poder de direção da empresa, por meio da plataforma digital, com indicação de rota, controle por GPS, geolocalização e avaliação dos clientes na própria plataforma, que tem o poder de dispensar os trabalhadores; 4) o preço da corrida é aplicado pela Cabify e controla as horas de trabalho para que o empregador formal pague os motoristas; 5) a imagem dos veículos e dos condutores é estipulada pela Cabify.

Assim, no país europeu o poder judiciário está preocupado não somente com os direitos dos trabalhadores, mas também com que esses sejam efetivos e completos, identificando corretamente o empregador. Verifica-se também que a corte europeia tem os pés fincados na realidade, não sendo seduzida pelos argumentos ideológicos que não têm nenhuma relação com os fatos, como a de auto-empreendedorismo, liberdade de contratação, empresas tecnológicas etc.

Um dia os ventos da civilização e do progresso voltarão a soprar pelas bandas do sul global.

OS MOTORISTAS DA UBER SÃO EMPREGADOS NA ALEMANHA. E OS DA CABIFY, NA ESPANHA.

Negar direitos fundamentais no trabalho é uma escolha política contrária aos compromissos assumidos na Constituição e tratados internacionais de direitos humanos

Por Rodrigo Carelli, professor da UFRJ, coordenador do Trab21

Pegar um Uber na Alemanha é a mesma experiência de qualquer outro lugar do mundo. O aplicativo é o mesmo e a forma de escolha de motoristas também: o algoritmo aponta um preço, seleciona um carro e o motorista aceita ou não a corrida com o valor proposto e a avaliação é feita pelo cliente ao final. No entanto, o cliente da Uber pode até não saber, mas a diferença está na forma de contratação dos trabalhadores: eles são empregados, com todos os direitos fartamente distribuídos na social-democracia alemã reconhecidos. A Uber contrata uma empresa terceirizada e todos os trabalhadores são empregados por essa companhia. Essa situação se deve à firmeza da Justiça germânica, que há anos rejeitou a argumentação que a empresa multinacional distribui ao redor do mundo e que alguns países aceitam.

Essa narrativa de ser uma nova forma de trabalho incompatível com a relação de emprego – e muitas vezes vinda com a afirmação que a incompatibilidade é tamanha que impede até de ter direitos no futuro – é a que vem sendo aceita de forma acrítica pelo Supremo Tribunal Federal, que esta semana analisa novamente a questão, desta vez pelo seu plenário.

Interessante aqui notar que o processo afetado ao plenário tem como parte a Cabify, empresa do ramo de transporte de pessoas, que deixou o país há alguns anos. Pois bem: na Espanha, sua terra de origem, os seus motoristas são empregados, também contratados por terceirizada. Em terras ibéricas, a Cabify e a Uber, não mais defendem que os motoristas sejam autônomos ou empreendedores, mas sim que é possível legalmente terceirizar, modelo que vem sendo duramente questionado pela Inspeção do Trabalho espanhola.

Ou seja, a própria empresa que deu origem ao processo judicial derruba o argumento utilizado pelas empresas e aceito sem maiores preocupações por ministros da Suprema Corte brasileira. Em outros países europeus, as supremas cortes não dão razão jurídica ao argumento de marketing das empresas que se denominam plataformas judiciais, como é o caso da Suíça, França, Holanda e Reino Unido. A esses países vem se juntar agora Portugal, que teve a primeira decisão sobre a relação de emprego na semana passada, sendo reconhecida a condição de empregado de um entregador da Uber.

A Uber, questionada sobre a possibilidade de ter que reconhecer direitos trabalhistas em toda por conta da diretiva que vem sendo discutida em âmbito europeu, afirmou que o reconhecimento do status de empregado não impediria a lucratividade da empresa, que é alcançado tanto na Alemanha quanto na Espanha. Por outro lado, indicou que os preços aumentariam e que ocuparia menos empregados, “concentrando as horas em menos trabalhadores”.

Tudo isso demonstra que a escolha da situação de trabalhadores sem direitos é meramente política. Deixar trabalhadores sem direitos é uma escolha política do Supremo Tribunal Federal de negação de direitos para barateamento de mão de obra, o que é contrário aos compromissos assumidos por nosso país na Constituição e nos tratados internacionais. Do jeito que as coisas andam, o próximo passo pode ser legalizar o trabalho escravo com o objetivo de baratear os custos das empresas, sob o argumento que isso pode garantir emprego para mais pessoas.

O APOCALIPSE DOS TRABALHADORES NO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL

A morte dos direitos sociais tem data marcada e faz parte de política do STF que não existe em nenhum outro lugar do mundo

Por Rodrigo Carelli, Coordenador do Trab21, Professor da UFRJ e Procurador do Trabalho

O fim está perto. Ao contrário do que fazem algumas seitas ou religiões, que têm o Armagedão como dogma e base da crença, o alerta para o fim próximo dos direitos sociais, tal como acontece com as consequências das mudanças climáticas do Antropoceno, tem boa base científica. O ocaso em até data marcada, quando provavelmente a Suprema Corte dará mais um passo, talvez fatal e definitivo, ao assassinato à proteção social prevista na Constituição da República e prometida pelo Brasil nos pactos internacionais de direitos humanos firmados.

Está marcado para o dia 8 de fevereiro de 2024 julgamento pelo Plenário do Supremo Tribunal Federal, com o objetivo de dizer, provavelmente com força vinculante aos demais juízes do país, que trabalhadores de plataformas digitais não são empregados e, por isso, não têm direitos. Entretanto, devo alertar sobre a possibilidade de gravidade ainda maior: segundo notícias, há uma probabilidade grande de os ministros da Suprema Corte irem mais além e impedirem o reconhecimento da condição de empregado quando haja qualquer contrato civil formalizado. Seria a inversão completa do que temos hoje: surgiria por criação e obra da Suprema Corte o princípio da primazia do formal sobre a realidade.

A política que o STF quer implementar no Brasil não tem paralelo no mundo. Não há um só país civilizado em que o Poder Judiciário é impedido de verificar a condição de empregado na realidade. Ao contrário, a reclassificação de contratos civis em contratos de emprego é algo extremamente comum nos Estados Unidos, Espanha, Inglaterra, Holanda, Alemanha, Suíça etc. Isso é previsto expressamente pela Recomendação nº 198 da Organização Internacional do Trabalho, que determina que a verificação da realidade se dá nos fatos (item 9) e não no arranjo contratual e que os Estados devem envidar esforços para impedir que os contratos civis sejam utilizados para mascarar verdadeiras relações de emprego (item 4). O princípio da primazia da realidade também é previsto pela jurisprudência vinculante da Corte Interamericana de Direitos Humanos.

É importante destacar que houve tentativa recente de se colocar um dispositivo na lei francesa que impedisse os juízes de verificarem a existência do vínculo empregatício no caso de plataformas digitais. O Conselho Constitucional francês entendeu a norma inconstitucional, afirmando que nem mesmo o  legislador pode impedir um juiz da República de conhecer os fatos apresentados por um cidadão e decidir conforme o direito, inclusive reconhecendo vínculo empregatício a partir da realidade e não da forma.

Ao fim e ao cabo, a nossa Suprema Corte está indo em sentido completamente contrário ao de seu homólogo europeu: aqui temos a negação explícita de acesso à Justiça do Trabalho e aos direitos fundamentais previstos na Constituição e direitos humanos em tratados internacionais a partir da forma.

O que acontece é claro caso de negacionismo científico. Da mesma forma que os negacionistas do clima, os negacionistas do direito do trabalho não sabem ou não querem saber das consequências de seus atos, e não raras vezes têm raiva de quem sabe. Os cientistas jurídicos, sejam eles constitucionalistas ou laboralistas, alertam, apreensivos, sobre a cegueira que vige na Suprema Corte, mostram o que acontece ao redor do mundo, mas não querem olhar para cima.

Os constitucionalistas se perguntam: onde está a questão constitucional a ser dirimida nesses casos que vêm sendo julgados? Afirmam os ministros do STF: a Suprema Corte já decidiu que são constitucionais outras formas de arranjo contratual que não a relação de emprego. Ora, mas quem é contra tal afirmação? Não houve um só julgado da Justiça do Trabalho que eu tenha conhecimento que tenha passado perto de contrariar tal premissa. Muito ao contrário, em toda declaração de fraude há o pressuposto da existência de um contrato civil em tese válido que não se observa naquele caso concreto. Quando uma decisão judicial diz que o trabalhador foi contratado fraudulentamente por meio de uma pessoa jurídica ela não está negando a possibilidade de contratação de pessoa jurídica, mas sim dizendo que ali, naquele caso, o arranjo contratual foi somente utilizado para mascarar a verdadeira relação jurídica. Da mesma forma, reconhecer a condição de empregado de determinada plataforma digital, em um caso concreto, a partir da realidade, verificando os requisitos da relação de emprego, não é negar a possibilidade que em outras plataformas digitais, ou até na mesma, haja a contratação de autônomos.

Qual artigo da Constituição da República permite afirmar, de antemão, a inexistência da relação de emprego em um caso concreto? Ou pior ainda: qual dispositivo entrega, de maneira geral e abstrata, ao Supremo Tribunal a competência de afirmar que não existe uma relação de emprego de trabalhadores com certo tipo de empresas? Não há, com exceção da carta super trunfo, que vence sempre os direitos sociais: o princípio da liberdade econômica ou livre iniciativa. Mas aí é uma dimensão de terraplanismo jurídico que cabe discutir em outro texto.

Já os laboralistas, como os ecologistas em relação ao clima, alertam para o apocalipse. Se o pior cenário realmente vier, não sobrará mais nada no direito do trabalho. Tanto a Constituição da República, que trata os direitos trabalhistas expressamente como direitos fundamentais, quanto os tratados de direitos humanos assinados pelo Brasil, que trazem uma série grande de direitos trabalhistas, serão completamente esvaziados. Letra mortíssima e enterrada. Quando um mero contrato formal, seja ele um pedaço de papel assinado, ou um clique no computador, puder retirar a condição de empregado, a relação de emprego praticamente não existirá mais. O direito do trabalho, como regulador de concorrência leal, deixando de ser patamar de competição entre empresas, terá se tornado um fardo que impedirá até os empresários humanistas e conscientes de cumprir os direitos sociais.

Assim, haverá uma migração em massa de trabalhadores para contratos civis sem direitos. Consequência lógica será a queda brusca na arrecadação e o colapso próximo do sistema de seguridade social. A renda do trabalhador cairá rapidamente com a ausência de patamares salariais legais e negociados pelos sindicatos e a possibilidade de exploração de horas extraordinárias de forma livre. O trabalho escravo e os acidentes de trabalho grassarão às escondidas, atrás do apagão nas estatísticas. Em breve toda a sociedade sentirá as consequências da precarização total das relações de trabalho. E o Estado Brasileiro não terá atendido aos compromissos assumidos perante a comunidade internacional nos tratados.

O Juízo Final será trazido pelo Olimpo judiciário brasileiro. A maior probabilidade é de que os trabalhadores brasileiros sejam condenados a não terem acesso à Justiça do Trabalho e a não terem direitos. Os direitos sociais terão sido exterminados pela Suprema Corte, suposta guardiã dos direitos fundamentais. A única redenção possível será levar o caso para as cortes internacionais de direitos humanos e apontar, com dados científicos, esse massacre que está em curso no Brasil.

O STF E O FIM DO TRABALHO ESCRAVO (E DOS ACIDENTES DE TRABALHO) NO BRASIL

O julgamento do Supremo Tribunal Federal dos trabalhadores para plataformas digitais trará consequências econômicas profundas que não estão sendo debatidas

Por Rodrigo Carelli, coordenador do Grupo de Pesquisa Trab21, vinculado à pós-graduação em direito da UFRJ

O Supremo Tribunal Federal está prestes a tomar uma decisão que deve fazer desabar as estatísticas do trabalho em condições análogas a de escravo no Brasil. Viva!

Está marcado para o início de fevereiro, pelo seu plenário, o julgamento da existência (ou não) de vínculo empregatício em caso de trabalhador por plataforma digital (seja lá o que isso queira ou possa dizer). Aparentemente a intenção é a de emitir uma decisão vinculante para que a Justiça do Trabalho não possa mais declarar o vínculo nesses casos. Provavelmente a Suprema Corte não irá parar por aí, determinando também a incompetência da Justiça do Trabalho para conhecimento acerca da existência da condição de empregado quando um contrato civil formal estiver em vigor. Não duvido também de que na decisão haja alguma ameaça a algum juiz que ouse tentar verificar a existência do vínculo para além do contrato formal, como ocorre em qualquer outro país do mundo.

Mas o que isso teria a ver com o fim do trabalho escravo e a redução dos números estatísticos do fenômeno? Ora, podendo contratar um trabalhador como prestador de serviços sem o risco da Justiça do Trabalho reconhecê-lo (e responsabilizá-lo), os empregadores irão em massa adotar esse tipo de contratação. Só dar um nome civil ao contrato (seja ele qual for), falar para o trabalhador assinar um papel, e pronto!, imunidade garantida pela mais alta corte do país. Com isso, os escravocratas terão a oportunidade de contratar seus trabalhadores por meio de contratos civis, conseguindo fugir da constatação da condição de escravizado.

Essa possiblidade não é meramente hipotética. Outro dia eu estava em sessão no Tribunal Regional do Trabalho do Rio de Janeiro, e me deparei com situação idêntica ao que deve se alastrar no Brasil. Era um caso de trabalhadores encontrados em situação análoga a de escravos em um grande festival de música. Eles dormiam no local de trabalho, em papelões lançados ao chão, e recebiam comida imprópria para o consumo humano. Em sua sustentação oral, o advogado da empresa renovou seus argumentos de defesa: não eram empregados, mas sim prestadores de serviço civis, com contrato assinado e tudo. Eram empreendedores, que, no uso de sua autonomia da vontade, colocavam no mercado sua força de trabalho para comercializar bebidas geladinhas junto aos contentes frequentadores do festival. Clamava pela incompetência da justiça especializada, trazendo em seu auxílio a jurisprudência do STF. Neste caso específico, ainda podendo fazê-lo, a turma do tribunal afastou a preliminar e entrou no mérito da causa, verificando que de fato eram todos empregados e estavam realmente em condição desumana.

Se existisse uma decisão vinculante, os magistrados não teriam outra escolha senão dar razão à empresa, pedir desculpas, pois não se tratava de trabalho escravo contemporâneo, mas sim de empreendedores que gozavam sua liberdade econômica, patrões que ordenavam a si mesmos carregar pesadas mochilas com as bebidas e tinham livremente escolhido dormir no chão e comer alimentação vencida.

Qual empregador, podendo firmar um contrato com menos ônus, tributários ou trabalhistas, vai preferir contratar como empregado seus trabalhadores? Qual empregador, mesmo socialmente responsável e consciente, vai arriscar contratar empregados se seus concorrentes vão ter vantagem concorrencial com menos custos decorrente de contratações sem direitos e ainda eliminar riscos frente ao Poder Judiciário?

É claro que vai haver uma debandada geral do que ideologicamente chamam de regime da CLT (em verdade é o regime constitucional de direitos fundamentais no trabalho previsto no art. 7º e seguintes da Constituição da República).  É a Economia, estúpido!, como diria certo presidente estadunidense. Com isso, não somente veremos a queda no número de trabalhadores em situação análoga à de escravo, mas também teremos um desabamento na quantidade de acidentes de trabalho, olha que maravilha! Alguém sabe o número de trabalhadores contratados por plataformas digitais que se acidentaram ou morreram realizando seu novíssimo empreendimento de entregar comida ou transportar pessoas? Ninguém sabe. Esses dados não existem, as empresas tratam esses trabalhadores (olha eu aqui de novo chamando empresários livres de operários) como clientes, parceiros civis, e acreditam não ter obrigações de registro dessas ocorrências. Esses acidentes, com morte, afastamentos ou sequelas, não são contabilizados como de trabalho, permanecendo incógnitos em nossos hospitais públicos e cemitérios, como também nos seguros e estatísticas de acidente de trânsito.

Haverá a percepção estatística de que temos um país com menos trabalhadores escravizados e com raros acidentes de trabalho. Porém, lá na realidade (que parece importar pouco hoje em dia), estando os empresários (os verdadeiros) livres (olha a verdadeira liberdade aí, gente!) de cumprir com as normas de proteção, inclusive ambientais de segurança e saúde no trabalho, o trabalho escravo só vai aumentar e os acidentes vão acontecer de maneira muito mais frequente, como ocorre silenciosamente com motoristas e entregadores.

Outras estatísticas serão afetadas também: a de empregos formais, resultando inevitavelmente em uma queda na arrecadação previdenciária. A renda do trabalhador também sofrerá declínio gigantesco, pois não será necessário observar-se nem salário-mínimo, quanto mais pisos salariais negociados por sindicato. E, convenhamos, sindicatos para quê no novo desenho do mercado de trabalho? É a Economia, estúpido!, poderia ser novamente trazido aqui. E a renda do trabalhador e a queda de arrecadação afetam toda a Economia.

As consequências econômicas da decisão que será tomada pelo Supremo Tribunal Federal são colossais e estão sendo muito pouco debatidas. Entretanto, como responsabilizar uma Suprema Corte, que não é submetida ao escrutínio popular do voto, sobre um colapso econômico? De qualquer forma, ela haverá de ser chamada pela população, pelos sindicatos, pela mídia e pelos demais poderes a dar conta de sua decisão ideológica, sem respaldo no texto constitucional, que ao pretender mudar de forma radical todo o arranjo principal da sociedade nos levará a uma grave e real crise em pouco tempo. (Mas alguns ainda dirão que pelo menos haverá liberdade…)

Publicado originalmente em 29/01/2024 em:

http://jornalggn.com.br/justica/o-stf-e-o-fim-do-trabalho-escravo-e-dos-acidentes-de-trabalho/

AS LIÇÕES EM MATÉRIA TRABALHISTA DOS ESTADOS UNIDOS DA AMÉRICA PARA O SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL

O governo estadunidense aponta em nova norma que as fraudes à relação de emprego são um fenômeno grave, que traz prejuízo à sociedade e para a economia como um todo

Rodrigo de Lacerda Carelli, Professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro

O Supremo Tribunal Federal-STF está em guerra contra a Justiça do Trabalho. Aponta o dedo para a Especializada e diz que não está a respeitar suas supremas decisões. A Justiça do Trabalho, de seu lado, nega a inobservância de qualquer decisão vinculante, apenas cumpre com o seu ofício quase secular de aplicar o direito do trabalho, em especial o princípio da primazia da realidade sobre a forma. A Suprema Corte brasileira, em tréplica, afirma que contratos hão de ser respeitados, em homenagem ao princípio da liberdade.

Como demonstrei em outro lugar, e tantos também acusaram, a Suprema Corte brasileira está tendo uma dificuldade muito grande de entender o direito do trabalho e a Constituição de 1988. Mais do que isso, parece não compreender o papel da relação de emprego e das outras formas relações de trabalho em uma sociedade capitalista, aplicando uma ideologia muito afastada de qualquer outro país no mundo, entendendo realizar uma análise econômica que fica muito longe de ser algo digno do nome que leva.

Os ministros do STF poderiam observar o que acontece na “Terra dos Livres”, como se autoproclamam os Estados Unidos da América, para verificarem como a noção de “liberdade” que estão aplicando nas relações de trabalho nada tem a ver com o que se propõe naquele país. E, de quebra, como se faz uma verdadeira análise econômica do direito.

Acaba de ser editada, em 9 de janeiro de 2024, uma “Final Rule” pelo Departamento do Trabalho estadunidense (o Ministério do Trabalho deles), regulamentando a Fair Labor Standards Act, lei federal que garante diversos direitos trabalhistas, um tipo de CLT deles. O objetivo do novo regulamento é substituir outro editado pelo órgão em 2021 sob a batuta de Donald Trump que, sob o pretexto de deixar mais clara a divisão entre empregado (employee) e trabalhador autônomo (independent contractor), tornava a caracterização da relação de emprego mais difícil e se afastava completamente da jurisprudência consolidada. O gol, assim, é de retornar aos critérios consagrados por anos de discussões judiciais e “ajudar empregadores e trabalhadores a melhor entenderem quando um trabalhador está na categoria de empregado e quando ele pode ser considerado um trabalhador autônomo para fins trabalhistas”.

O governo estadunidense entende que a misclassification, que chamamos aqui de fraude à relação de emprego, é “um problema sério que impacta os direitos dos trabalhadores ao salário mínimo e ao pagamento de horas extraordinárias, fomenta o furto de salários (wage theft), permite a alguns empregadores derrotar deslealmente seus concorrentes cumpridores das leis e prejudica a economia como um todo.” Fraudar a relação de emprego “é uma questão muito grave que priva os trabalhadores dos direitos e proteções básicas”.

A nova norma regulamentadora é uma aula, não só de direito do trabalho, mas de semântica e de capitalismo. Ela deixa claro que as figuras de empregado e trabalhador autônomo coexistem na sociedade capitalista, mas cada um exercendo seu papel, não sendo intercambiáveis, como meras opções do empregador de forma contratual, não sendo uma opção do empresário, como parece ser a crença de certos ministros do STF.

Ao contrário do que acontece no STF, o governo estadunidense ouviu os especialistas e entidades interessadas, discutindo em documento de mais de 300 páginas todos os principais argumentos levantados na discussão pública. Também diversamente do que ocorre no STF, foi realizada uma análise econômica do fenômeno, e não um mero apanhado de palavras de ordem ou conceitos deslocados de sua função; nem se diga a utilização da palavra “economia” como um “super trunfo”, como tem ocorrido com frequência na nossa Suprema Corte.

Foi realizada uma análise estatística pormenorizada para entender quem é trabalhador autônomo nos Estados Unidos, em qual setor da economia ele trabalha, idade, raça e educação. Verificou-se ali que há um total de 10,6 milhões de trabalhadores autônomos nos Estados Unidos, o que representa 14,99% da força de trabalho. As pesquisas trazidas mostram que de 10 a 30% dos empregadores nos Estados Unidos fraudam a relação de emprego, o que pode chegar a 9 por cento de todos os trabalhadores autônomos. Afirma também o documento que a fraude atinge desproporcionalmente negros, indígenas e pessoas de cor, ou seja, imigrantes em geral.

Além disso, lembra a regulamentação que um dos objetivos do direito do trabalho é a regulação da concorrência desleal (unfair method(s) of competition in commerce). Com a fraude, o mau empregador corta custos do trabalho e prejudica seus concorrentes, por poder oferecer orçamentos mais baratos, deixando os empresários cumpridores da lei em desvantagem.

Foi realizada uma ampla análise dos custos da fraude trabalhista (misclassification of independent contractors). Foi verificado que os trabalhadores autônomos geralmente não recebem benefícios de saúde e de aposentadoria de seus empregadores. Os empregados têm maior chance de terem seguro saúde em relação aos autônomos e, enquanto 42% dos empregados recolhem para aposentadoria, somente 8 por cento dos trabalhadores por conta própria realizam recolhimentos. O governo deixa claro que “baixas poupanças de aposentadoria podem resultar em um fardo tributário de longo termo a todos os Estadunidenses devido ao incremento da necessidade de programas sociais assistenciais”.   Em uma comparação, verificou-se que enquanto um empregado poderia ter benefícios anuais no valor de 15.547 dólares, o autônomo teria 6.084 dólares.

O impacto no fisco também foi estudado, verificando-se uma perda de ingressos tributários e aumento de custo para os estados e o governo federal.

Além da perda dos direitos trabalhistas, como não pagamento de horas extraordinárias com o acréscimo de 50 por cento após 40 horas semanais, como é previsto na lei estadunidense, foi também constatado que 13% dos trabalhadores autônomos não recebem efetivamente o salário-mínimo, em contraste com apenas 2 por cento dos empregados. 29 por cento dos trabalhadores autônomos fazem horas extraordinárias em comparação com 17 por cento dos empregados. Além disso, a sobrejornada é bem maior para os trabalhadores autônomos do que para empregados, 15,4 horas em média contra 11,8.

Em relação aos salários, não se verificou discrepância entre os trabalhadores autônomos e empregados na mesma função. No entanto, foi encontrado em uma pesquisa específica em Washington DC que a troca de um emprego por um contrato de trabalho autônomo poderia ser associada à perda de 20 a 50 por cento na renda e que a ida de uma condição de autônomo para empregado gerava de 65 a 85 por cento de aumento nos salários. Também foi constatado na pesquisa que, em funções de baixa renda, o salário dobrava no percurso de uma condição de autônomo para a de empregado.

Mas vamos para o que diz a norma, que pretende modificar a situação fática da misclassification.

Ela dispõe que a existência de um vínculo de emprego é uma questão de “realidade econômica” (economic reality), a partir da verificação uma série de fatores ou indícios que vão (ou não) indicar a existência da dependência econômica (economic dependence), critério maior para a verificação da condição de empregado. Assim, em primeiro lugar, a normativa estadunidense se aproxima daquilo que é exercido em todo o mundo desenvolvido e preconizado pela Organização Internacional do Trabalho na Recomendação nº 198: a verificação da relação de emprego é realizada com base nos fatos, e não no arranjo contratual.

O que se deve buscar, com base na realidade econômica da relação, é a constatação da existência da dependência econômica, ou seja, se o trabalhador está “economicamente dependente a um empregador para trabalhar” (“economically dependent on an employer for work”). Nesse caso, ele será um empregado. Se, por outro lado, o trabalhador está realizando um negócio por e para si próprio (“in business for themself”), ele será um trabalhador autônomo (independent contractor), ou, como dizemos tecnicamente no Brasil, ele é trabalhador por conta própria, e não por conta alheia (§ 795.105, “b”).

Parece muito básico, e é mesmo, pois assim funciona o capitalismo. Mas é muito importante dizermos o básico, pois as pessoas não versadas em direito do trabalho não têm a base suficiente para poder fazer análises mais profundas.

Voltando à norma, ela diz que a dependência econômica “não foca na quantidade de remuneração que o trabalhador ganha, ou se o trabalhador tem outras fontes de renda”, mas sim se, na realidade, para trabalhar o trabalhador necessita se engajar em negócio alheio (§ 795.105, “b”).

Os fatores que indicam a dependência econômica são relacionados ao que chama de economic reality test, que indica múltiplos fatores como ferramentas ou guias para uma análise global da situação. Esses fatores são analisados em seu conjunto, não sendo a ausência de nenhum deles excludente da relação de emprego (§ 795.110, “a”, 1). A lista também não é exaustiva, segundo a norma (§ 795.110, “a”, 2).

O primeiro fator elencado é a oportunidade de lucro ou perda dependendo da habilidade gerencial (§ 795.110, “b”, 1).  Propõe-se verificar se o trabalhador determina ou pode negociar significativamente o preço por seu trabalho; se ele pode aceitar ou declinar trabalho ou escolher a ordem e o tempo de realizar o trabalho; se ele faz marketing ou propaganda ou esforço para expandir seu negócio, e se o trabalhador toma decisões de contratar outros, compra material e equipamento ou aluga espaço para realização do negócio. Se o trabalhador, por sua vez, não tem oportunidade de lucro ou perda, o fator sugere que ele é um empregado. A norma deixa claro que a decisão de trabalhar mais horas ou pegar mais tarefas, quando o pagamento é fixo por hora ou por tarefa, não reflete o exercício de competência gerencial. O que se busca é saber se ele tem realmente um negócio próprio.

O segundo fator são os investimentos pelo trabalhador e pelo potencial empregador (§ 795.110, “b”, 2). O fator verifica quais investimentos realizados pelo empregador são capital e considerados atos de empreendedorismo por natureza. A norma explicita que custos do trabalhador com ferramentas ou equipamento para a realização de uma tarefa custos específicos do trabalho e aqueles que o potencial empregador impõe unilateralmente ao trabalhador não são provas de investimento de capital e indicam a condição de empregado. Os investimentos que são considerados como típicos de empreendedorismo são aqueles que dão base a um negócio independente, como aqueles realizados para aumentar a habilidade de trabalhador realizar diferentes tipos ou mais trabalho, reduzir custos ou aumentar sua margem de mercado. Além disso, o investimento deve ser comparado com aquele realizado pelo empregador, de forma proporcional.

O terceiro fator é o grau de permanência da relação de emprego (§ 795.110, “b”, 3). Se a relação for indefinida na duração, contínua ou exclusiva, há indicação de que se trata de uma relação de emprego. O fator pesa em favor da condição de autônomo se for de duração definida, não-exclusiva, baseada em projeto ou esporádica em um negócio próprio do trabalhador que coloca no mercado seus serviços ou trabalha para múltiplos tomadores. A característica sazonal ou temporária do trabalho não indica a condição de autônomo. Se a falta de permanência é devido às características operacionais de um negócio ou setor particular, o fator não é necessariamente indicador do estatuto de autônomo, a menos que o trabalhador esteja realizando um negócio independente.

O quarto fator é a natureza e o grau de controle (§ 795.110, “b”, 4). Neste indício, a norma considera o potencial controle do empregador, inclusive aquele não efetivamente realizado e que permanece em potência, sobre a performance do trabalho e os aspectos econômicos da relação de emprego. Os fatos relevantes elencados pela norma são: se o empregador determina (ou pode determinar) o horário do trabalhador, supervisiona (ou pode supervisionar) a performance do trabalho ou explicitamente limita a possibilidade de trabalhar para outros. É acrescentado que se o empregador usa meios tecnológicos para supervisionar a performance do trabalho (como equipamentos eletrônicos), ou se reserva o direito de supervisionar ou disciplinar trabalhadores ou realiza demandas ou restrições a trabalhadores que não permitam que trabalhem quando quiserem, a indicação é que sejam empregados. Também devem ser considerados aspectos econômicos, como controle de preços ou tarifas de serviços ou o marketing dos serviços ou produtos do trabalhador, para a verificação da condição de empregado.

O quinto fator a ser verificado é até que ponto o trabalho realizado é parte integrante dos negócios do possível empregador (§ 795.110, “b”, 5). Deve ser verificado se o trabalho do autônomo está integralmente dentro do negócio alheio, ou seja, da atividade econômica do empregador. Se o trabalho é crítico, necessário ou central do negócio do empregador, ele será um empregado.

O sexto fator são as competências e a iniciativa (§ 795.110, “b”, 6). Se o trabalhador aplica habilidades especializadas para realizar o trabalho e se essas competências contribuem para a realização de uma iniciativa própria de negócio, estaremos diante de um trabalhador autônomo. Se o trabalhador não usa habilidades ou conhecimentos especiais e se depende de treinamento do empregador, ele é empregado. O contrário não indica necessariamente um trabalho autônomo, porque tanto empregado quanto trabalhador autônomo podem ser trabalhadores especializados. O que indicaria a existência do fator é a conjugação das competências especializadas com a realização de uma iniciativa própria de negócio, aí sim caracterizando um trabalho autônomo.

Com toda essa clareza, não é muito difícil ver quando um trabalhador é autônomo ou se é empregado. Um médico pode ser ou não empregado. Ele é autônomo quando realiza sua função como negócio próprio, estipulando seu preço, recebendo os pagamentos, formando uma carteira de clientes, organizando sua forma de atender e a quantidade de clientes. Nunca será quando inserido em um hospital, cumprindo plantões ou atendendo pacientes do hospital. Aliás, um mesmo médico pode ser empregado e autônomo ao mesmo tempo, em contratos diversos. A profissão não indica a natureza da relação jurídica. Um engenheiro pode contratar como autônomo para realizar projetos para o mercado, mas não será autônomo se trabalhar para uma construtora de forma permanente. Um trabalhador em plataforma digital será autônomo se ela for utilizada para ofertar seu serviço no mercado. Será empregado se a plataforma digital ofertar e garantir, em verdade, um serviço próprio, como de transporte de pessoas e mercadorias, estipulando o preço, resguardando para si os clientes, controlando a qualidade e disciplinando os trabalhadores. Não é difícil, mas essa verificação nunca poderá ser feita em abstrato, mas sempre observando a realidade.

Assim, o governo estadunidense, preocupado com o grave problema, vai completamente na contramão da jurisprudência que tem se formado no Supremo Tribunal Federal. Aqui, pretende-se impor a forma sobre a realidade, negando a existência do grave problema e desprezando todo o direito social resguardado na Constituição e em tratados internacionais assinados pelo Brasil. O STF quer fechar os olhos para a realidade, no estilo Não Olhe para Cima, tentando afirmar inexistência de vínculo empregatício em abstrato, o que é algo afrontoso ao direito do trabalho em todo o mundo. O STF é, nesse sentido, negacionista, e a pretensão que se avizinha de se afastar de todos os países civilizados do mundo é perigosa para o projeto de um país civilizado desenhado na Constituição da República. Tomara que abra os olhos para os exemplos vindos dos países centrais do capitalismo e não nos reserve um futuro de periferia precária afastada completamente da garantia dos direitos humanos mais basilares.

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A norma, em sua integralidade, com suas razões, está aqui.

Torto Arado e o trabalho em plataformas digitais: as novas formas de velhas permanências da exploração colonial – artigo de rodrigo carelli

 O romance Torto Arado,[1] de Itamar Vieira Junior, vencedor de vários prêmios literários, vem alavancando cada vez mais leitores com uma história sobre um Brasil profundo (profundo em todas as suas acepções) em que a exploração de mão de obra antes escravizada continua a ser realizada por outros meios e formas. A população negra do campo, que em tese alcançou a liberdade completa em 1888, permanece por gerações a sofrer violências de todas as naturezas.

Esse Brasil profundo, em desenho geral e visto de forma ampla, tem seu paralelo nas grandes cidades, em que a população historicamente excluída e racializada permanece há tempos vivendo sob as mesmas condições de miséria e indignidade, ilustrada agora naquilo que se chama de trabalho em plataformas digitais. Esse paralelo pode ser bem representado não por uma obra de ficção inspirada na realidade, como em Torto Arado, mas por vídeos realizados em aparelhos celulares que ganharam a grande mídia após espalharem-se pelas redes sociais.

O último desses vídeos que se tornou viral apresenta um sócio de restaurante, não identificado pelo nome em nenhuma reportagem, que hostiliza entregador de comida que se encontrava descansando em um canto das docas do Shopping Center em que funciona seu negócio. As docas são pontos longe do acesso dos clientes, ficando geralmente às costas dos centros comerciais, e ali se realizam os trabalhos de carga e descarga de mercadorias.

Mesmo não se tratando de um lugar nobre, o empresário, de pele branca, insiste aos berros que o trabalhador, de pele escura, não deve ficar naquele local, muito menos recarregar o seu celular ali. Afirma expressamente ao trabalhador que ele é folgado e que ali não é a casa dele, falando-lhe que não paga 140 mil reais de aluguel para que entregador fique de folga no estabelecimento.

A comparação que se pode desenhar com o universo de Torto Arado é incrível: o novo dono da fazenda, na parte final do livro, apresenta-se de forma agressiva aos trabalhadores rurais, proibindo-os de construir casas de alvenaria e mesmo de enterrar seus defuntos naquelas terras, afirmando-se como proprietário e senhor dos destinos de todos e de tudo ali.

Mas as coincidências, resguardadas as diferenças de tempo e lugar, não param por aí. Em Torto Arado os trabalhadores afirmavam “viver de morada”: pediam para ficar na fazenda e trabalhavam na terra em troca da oportunidade, que poderia incluir uma agricultura de subsistência nos arredores da casa, coletas de frutos como buriti e dendê e ainda pescar no rio. Muitos dos trabalhadores em plataforma, similarmente, percebem-na como um lugar que dá trabalho a quem quiser trabalhar e em troca disso deixam parte de seus ganhos para essas empresas após longas horas.

Assim explicou Zeca Chapéu Grande ao seu filho: “Pedir morada é quando você não sabe para onde ir, porque não tem trabalho de onde vem. Não tem de onde tirar o sustento.”(…) Aí você pergunta pra quem tem e quem precisa de gente pra trabalho: ‘Moço, o senhor me dá morada?’”.[2]

Quando havia em Água Negra, a fazenda onde se passa a história contada no livro, alguém a questionar a injustiça da situação exploratória que viviam, logo essa objeção era rechaçada com o discurso da gratidão aos donos da terra por terem acolhido e dado trabalho a eles. Essa situação se dá da mesma forma em Torto Arado e nas plataformas digitais tortas, as quais são às vezes aclamadas por “dar trabalho”.

Em Torto Arado os proprietários nunca apareciam (somente quando as terras são vendidas é que o novo proprietário se faz presente de forma ostensiva, como visto acima). Era Sutério, o gerente-capataz, quem dava as ordens de fazer barragem, capinar, deixar a terra livre. Ele que dizia como deveriam e como não deveriam ser as casas dos trabalhadores, o que eles deviam e o que não podiam fazer.

Os algoritmos das plataformas digitais são o equivalente de Sutério: os proprietários não precisam aparecer para que as ordens sejam dadas e se façam cumpridas.  

Sutério também tomava os frutos do trabalho à força dos trabalhadores: passava nas casas e pegava batatas, feijão, abóbora e folhas de chá. Alguém disse “Que usura! Eles já ficam com o dinheiro da colheita do arroz e da cana!”. Outro respondia, com misto de deboche e indignação: “Mas a terra é deles. A gente que não dê que nos mandam embora. Cospem e mandam a gente sumir antes de secar o cuspo.”[3]

Pois a situação é bem similar aos inúmeros relatos de trabalhadores de plataforma em que as empresas ficam com parte dos ganhos dos trabalhadores de forma irregular, por meio de cancelamento de pagamentos, apropriação de gorjetas ou apontamentos fraudulentos de valores cobrados dos clientes.

O receio de serem dispensados a qualquer momento, como dito acima, e ficarem seu sustento, é o melhor trunfo dos exploradores do trabalho: no vídeo do sócio do restaurante, este ameaça dizendo que iria mandar a Ifood excluir o trabalhador, que ele não trabalharia mais lá. Em Torto Arado se diz: “Aquela fazenda sempre teria donos, e nós éramos meros trabalhadores, sem direito sobre ela”.[4]

Outro paralelo que se sobressai é a solução das leis para a questão. Em Torto Arado, o que se percebe não é a ausência de leis: os trabalhadores sabem que são explorados e que têm direito a terra, por serem quilombolas, ou que deveriam receber remuneração, por trabalharem para os donos da fazenda. O que falta são instituições para aplicá-la, ou uma aplicação correta pelas instituições quando aparecem.

A única instituição que aparece em Torto Arado, a polícia, toma uma decisão desviada dos fatos para favorecer os donos da fazenda. Da mesma forma acontece com as plataformas digitais: temos leis, inclusive o dispositivo específico que prevê a subordinação algorítmica.[5] Temos a solução do trabalho avulso ou do trabalho intermitente pronto para serem utilizados, se assim se quisesse. Mas os dispositivos legais são ignorados, acabando por proteger os proprietários das plataformas em detrimento da proteção dos trabalhadores de óbvia e ululante necessidade.

O torto e velho arado que dá título ao livro faz com que a terra fique infértil, destruída, dilacerada. A torta e nova utilização das plataformas digitais para a exploração de trabalhadores em sua maioria negros e despossuídos, que somente conseguem obter remuneração para a sobrevivência após se submeterem exaustivas e perigosas jornadas de trabalho,[6] faz com que a sociedade seja infértil, se destrua e permaneça dilacerada.

Como se diz em Torto Arado, “O vento não sopra, ele é a própria viração. Se o ar não se movimenta, não tem vento. Se a gente não se movimenta, não tem vida.”[7] As plataformas digitais não fazem intermediação de serviços, elas criam, modelam e organizam o próprio serviço que afirmam somente mediar.

Terminemos com uma frase de Zeca Chapéu Grande: “Esta terra que cresce mato, que cresce a caatinga, o buriti, o dendê, não é nada sem trabalho. Não vale nada. Pode valer até para essa gente que não trabalha. Que não abre uma cova, que não sabe semear e colher. Mas para gente como a gente a terra só tem valor se tem trabalho. Sem ele a terra não é nada.”[8] Uai, Zeca Chapéu Grande estava falando das plataformas digitais?  

Publicado originalmente no Jota, em 29/07/2021: https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/torto-arado-plataformas-digitais-exploracao-colonial-29072021


[1] VIEIRA JUNIOR, Itamar. Torto Arado. São Paulo: Todavia, 2019.

[2] Idem, P. 185.

[3] Idem, p. 45.

[4] Idem, p. 79.

[5] Art. 6ª, Parágrafo único, CLT.  “Os meios telemáticos e informatizados de comando, controle e supervisão se equiparam, para fins de subordinação jurídica, aos meios pessoais e diretos de comando, controle e supervisão do trabalho alheio”.

[6] ABÍLIO, Ludmila Costhek et al. Condições de trabalho de entregadores via plataforma digital durante a COVID-19. In Revista Jurídica Trabalho e Desenvolvimento Humano, v. 3, 2020.

[7] Idem, p. 99.

[8] Idem, p. 186.

PUBLICADO ARTIGO DE PESQUISA DO TRAB 21 SOBRE A PLATAFORMA GETNINJAS E O CROWDWORK

A Revista de Estudos Institucionais – REI publicou artigo de autoria de Rodrigo Carelli e Angela Bittencourt que se intitula “NINJAS FAZEM BICO? UM ESTUDO DE PLATAFORMA DE CROWDSOURCING NO BRASIL”, resultado de pesquisa empírica realizada pelo Grupo de Pesquisa Trab21.

Eis o resumo do artigo:

RESUMO

O presente trabalho realiza uma análise sobre a plataforma de crowdsourcing GetNinjas. Baseado em pesquisa empírica, por meio de questionário semi-estruturado apresentado a vinte e quatro trabalhadores inscritos na plataforma, que se voluntariaram a responder às perguntas on-line em formulário eletrônico disponibilizado, o artigo conclui que o objeto de pesquisa pode ser definido como uma plataforma de crowdsourcing mista e genérica que atua tanto em nível global (on-line) quanto em nível local (off-line). O estudo, além de apontar problemas relacionados com a concorrência entre trabalhadores, em uma espécie de leilão negativo, e com a avaliação unilateral publicizada dos prestadores de serviços por parte dos clientes, sem a existência de um contraditório antes da qualificação, argumenta que a cobrança de “moedas virtuais” realizada pela empresa para os profissionais acessarem as propostas de trabalho não é lícita, tendo em vista o princípio da não-mercantilização do trabalho, a Convenção nº 181 da OIT (Organização Internacional do Trabalho) e a aplicação analógica da Lei nº 6.019/1974.

O artigo pode ser baixado em PDF aqui: https://www.estudosinstitucionais.com/REI/article/view/499

CORTE SUPERIOR DA ALEMANHA RECONHECE VÍNCULO DE EMPREGO COM PLATAFORMA COM BASE NA SUBORDINAÇÃO ALGORÍTMICA E GAMIFICAÇÃO

Por Rodrigo Carelli

A nona turma do Bundesarbeitgerichts, equivalente germânico ao Tribunal Superior do Trabalho, reconheceu no início do mês de dezembro de 2020 o vínculo de emprego de trabalhador com plataforma de microtarefas.

O trabalhador realizava microtarefas (“mikrojobs”) disponibilizadas pela plataforma que consistiam em se dirigir à rede varejista e de postos de gasolina para verificar a exposição de produtos de determinadas marcas nas prateleiras, tirando fotos dos produtos e respondendo a perguntas sobre a sua comercialização nas lojas. O trabalhador foi contratado por meio de um termo e condições de uso em que o definia como autônomo. A partir da criação de sua conta, o “usuário” da plataforma poderia receber demandas relacionadas a pontos de venda específicos, não sendo obrigado a aceitar as tarefas oferecidas. O “crowdworker”, ou trabalhador na multidão, ao aceitar o pedido, deveria realizá-lo no prazo de duas horas e conforme as instruções dadas pela plataforma de “crowdwork”.

Em onze meses o trabalhador cumpriu 2978 ordens, até o momento em que a plataforma cessou o seu acesso. O trabalhador ajuizou ação declaratória do vínculo de emprego, e no curso do processo a plataforma rescindiu o contrato do trabalhador de forma cautelar. O trabalhador então emendou a petição para incluir pedidos pecuniários e a proteção contra a despedida injusta.

O trabalhador, que havia perdido a causa nas duas primeiras instâncias, conseguiu reverter parcialmente na corte superior trabalhista. O tribunal entendeu que, conforme o § 611ª do Código Civil Alemão (BGB), a condição de empregado se dá quando o trabalho é realizado para terceiros de acordo com diretrizes do contratante. Se o trabalhador contratado por outra forma contratual demonstrar que na realidade se trata de uma relação de emprego, a designação do contrato é irrelevante.

A Corte Superior afirmou que o “crowdword” realizado por meio de plataformas pode ser reconhecido como uma relação de trabalho. Se o contratante controlar o trabalho por meio da plataforma online por ele operada de tal forma que o contratante não seja livre para organizar seu trabalho quanto a local, tempo e conteúdo, estaremos diante de uma relação de emprego, decidiu o Tribunal.

No caso, o tribunal superior do trabalho alemão entendeu que o trabalhador realizou o trabalho de maneira típica de um empregado, pois estava vinculado a instruções dadas pela plataforma, verificada assim a dependência pessoa. Se é verdade que o trabalhador não era contratualmente obrigado a aceitar as ofertas de trabalho, a estrutura organizacional da plataforma operada pela empresa foi projetada para garantir que os usuários registrados por uma conta aceitassem continuamente um pequeno pacote de microtarefas e os concluísse pessoalmente, um a um, de maneira esparsa, somente sendo disponibilizado outro pacote quando cumprisse o anterior. Os magistrados verificaram que somente atingindo determinado nível no sistema de avaliação, que na prática é aumentado com o número de pedidos aceitos e cumpridos, é permitido aos “usuários” receberem pedidos maiores, contendo várias tarefas, que permitiriam ao trabalhador realizá-los em uma só rota e ter uma remuneração mais alta. Esse sistema de incentivo induziu o trabalhador a realizar continuamente atividades em seu bairro.

Assim, ao mesmo tempo, o tribunal alemão reconheceu a subordinação algorítmica e uma de suas técnicas, a gamificação, como determinantes do critério identificador do vínculo de emprego.

O Tribunal, por outro lado, rejeitou parcialmente os demais pedidos do trabalhador, pois entendeu que a dispensa foi válida e que a remuneração paga como autônomo não deveria ser levada em consideração para o cálculo de um salário em uma relação de emprego, devendo ser arbitrada pelas instâncias inferiores com base nos salários habitualmente pagos a empregados, conforme a definição e tabelas dispostas na lei, para fins dos cálculos dos valores  devidos ao trabalhador.

Bundesarbeitsgericht, Urteil vom 1. Dezember 2020 – 9 AZR 102/20 –
Vorinstanz: Landesarbeitsgericht München, Urteil vom 4. Dezember 2019 – 8 Sa 146/19 –

Foto: Pixabay

A Justiça do Trabalho e a deriva entrópica da sociedade brasileira – artigo de rodrigo carelli

Na manhã do dia 23 de setembro, abro as redes sociais e me deparo com uma notícia alvissareira: o Tribunal Supremo da Espanha seguiu a tendência já delineada pelas cortes inferiores e considerou entregadores de plataforma como empregados.

Minha esperança por um mundo mais justo se desfez um pouco quando logo em seguida me deparo com outra notícia que me trouxe de volta para a minha realidade de brasileiro em meio ao caos de uma pandemia: juíza do trabalho de São Paulo negou os pedidos de proteção frente ao coronavírus para trabalhadores de plataforma de transporte de pessoas.

A divulgação no mesmo dia, quase que de forma simultânea, de duas decisões tão díspares, tanto em relação à percepção da realidade enfrentada pelos trabalhadores em plataforma, quanto pelo entendimento do que significa o direito e justiça, em especial a do trabalho, me faz questionar se a Justiça do Trabalho está em uma deriva um tanto perigosa, afastando-se de seu design original. As decisões parecem ter sido emanadas não somente por órgãos diferentes em continentes diversos, mas em mundos apartados, em dimensões distintas.

A decisão do Tribunal Supremo espanhol seguiu uma tendência já delineada pelo seu equivalente francês, a Corte de Cassação da França, de que há o vínculo empregatício entre trabalhadores de plataformas e as empresas que exploram o serviço.

No caso concreto espanhol, estava sendo julgada a relação entre um entregador e a empresa Glovo. O Tribunal entendeu, em consonância com o que a jurisprudência da Corte de Justiça da Comunidade Europeia decidiu em relação à Uber, que a plataforma não é uma mera intermediária na contratação de serviços entre comércios e entregadores, mas sim que é uma empresa de mensageria e entregas, que fixa as condições essenciais para a prestação desses serviços.

Para realizar seu negócio, ela contrata entregadores que não dispõem de organização empresaria própria e autônoma, e que prestam serviços inseridos na organização de trabalho do empregador. Foram identificados como existentes os elementos da relação de emprego, em especial a dependência e o trabalho por conta alheia.

A questão, assim, chega praticamente ao fim na Espanha, que deve proximamente regular a situação na forma já modelada pela jurisprudência firmada, sendo que os trabalhadores receberão a proteção do direito do trabalho a eles devida como empregados que são.

Já a decisão brasileira foi tomada pela 55ª Vara do Trabalho de São Paulo em ação civil pública ajuizada pelo Sindicato dos Trabalhadores com Aplicativos de Transporte terrestre Intermunicipal do Estado de São Paulo em face da 99, pela qual buscava-se a tutela judicial para a implementação de várias medidas de proteção em relação ao coronavírus, como disponibilização de álcool em gel, máscara facial, luvas, higienização de veículos e afastamento remunerado dos trabalhadores em grau de alto risco.

Já na análise da competência da Justiça do Trabalho, a magistrada deixa claro que a relação entre os trabalhadores e a plataforma seria de trabalho em sentido amplo, e não a de emprego. A juíza, ao passar a julgar o mérito da causa, firma que “é fato notório que a empresa já vem tomando diversas medidas voltadas à redução dos riscos de contaminação por parte de seus motoristas e clientes”, tomando como prova o sítio eletrônico da empresa (!) e que a plataforma já vem fornecendo equipamentos (não há indicação de elementos para essa afirmação) e que a empresa, “por sua proprietária chinesa, criou um fundo para apoiar motoristas parceiros diagnosticados com ‘coronavírus’, incluindo os que atuam no Brasil, através do qual concede um auxílio financeiro àqueles que tiveram a suspensão temporária de sua conta, por terem sido diagnosticados com a doença ou ter recebido recomendação médica de quarentena em razão da Covid-19.” (sic)

Com base então nas informações da empresa, a juíza julgou improcedentes os pedidos da ação e, ainda, com requintes de crueldade, indeferiu a Justiça gratuita e condenou o sindicato a honorários sucumbenciais de R$ 1.369.650,00, mais custas de R$ 24.000,00.

Não se sabe se a juíza ignora a lei, não deveria nem poderia ignorá-la, mas a lei de ação civil pública é expressa em dizer que não pode haver condenação da associação autora, salvo comprovada má-fé, em honorários de advogado, custas e despesas processuais (art. 18).

Ou seja, a crueldade salta aos olhos não somente pela ilegalidade patente da decisão, mas porque, além disso, inviabiliza economicamente para sempre o sindicato de formação recente pelo fato de – ousadia suprema! – ajuizar ação para a defesa da saúde e vida de seus representados.

Os rumos das duas decisões são flagrantemente opostos. O Poder Judiciário de uma nação toma sempre a feição de sua própria sociedade. A Espanha toma a via da civilização, do mundo dos direitos, recompondo uma vida em comunidade que se desajustou e colocou cidadãos sem os direitos devidos.

O Brasil toma a via do caos e da destruição, da morte e da desproteção, deixando os trabalhadores à míngua, dependentes de sua própria sorte ou do que as empresas prometerem em seus sites de internet. A Espanha volta a considerar os trabalhadores como sujeitos de direito, enquanto no Brasil os sujeitos são despidos de seus direitos mais básicos que são a saúde e a vida.

A segunda lei da termodinâmica afirma que a entropia tende a crescer com o tempo em sistemas isolados. Ou seja, o mundo tende a se desorganizar e se direcionar para o caos. A neguentropia, por seu lado, é um conceito da biologia que verifica que dentro de determinados sistemas, como por exemplo corpos de seres vivos, há um grau de equilíbrio e desenvolvimento organizacional que controla a tendência de entropia, ou seja, de caos, como por exemplo a manutenção da temperatura corporal estável, mesmo com oscilação de temperatura no exterior.

A nossa sociedade está em um processo acelerado e descontrolado de entropia, multiplicando-se o caos em todas as áreas, justamente pela falta de esforço neguentrópico ambiental, de saúde, de educação etc. A Justiça do Trabalho, deixando a sociedade agir sem limites, não serve como elemento neguentrópico, que é justamente o objetivo principal para o qual foi desenhada, necessário para manter um nível mínimo de ordem nas relações de trabalho e, consequentemente, na sociedade brasileira. Já a justiça espanhola, em esforço neguentrópico, tenta restaurar o equilíbrio da vida em sociedade na Espanha, afastando ou impedindo a expansão do caos.

A tendência inercial é o caos. Há a necessidade premente que as instituições brasileiras voltem a servir como elementos neguentrópicos, sob pena de não sobrar mainada em pouco tempo. E isso, mais do que nunca, se aplica à Justiça do Trabalho. Espero poder voltar a abrir as redes sociais pelas manhãs e ler que as instituições brasileiras, em especial a Justiça do Trabalho, estão a serviço do equilíbrio, e não do caos em nossa surrada sociedade.

RODRIGO DE LACERDA CARELLI – Procurador do Trabalho no Rio de Janeiro e professor de Direito do Trabalho e Processo do Trabalho na Universidade Federal do Rio de Janeiro. Coordenador do Grupo de Pesquisa Trab21.

Publicado originalmente no Jota, em 30/09/2020: https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/a-justica-do-trabalho-e-a-deriva-entropica-da-sociedade-brasileira-29092020

O projeto de regulamentação do trabalho em plataformas: um novo Código Negro? – ARTIGO DE RODRIGO CARELLI

O Código concedia os seguintes direitos aos negros escravizados: descanso semanal aos domingos, professar a religião católica e ir às missas, obrigação de o senhor fornecer, aos escravizados com dez ou mais anos de idade, dois potes e meio de farinha de mandioca e três mandiocas de duas libras e meia, além de duas libras de carne de boi salgada ou três libras de peixe (metade disso às crianças escravizadas); proibição de substituição dessa alimentação por cachaça; fornecimento de duas peças de roupa de pano ou quatro medidas de pano, à escolha do senhor.  Havia ainda a previsão de que caso os escravizados não fossem alimentados, vestidos e tratados conforme o Código, eles poderiam alcançar o procurador-geral, que perseguiria o senhor de escravos pelos “crimes e tratamentos bárbaros e desumanos dos senhores em relação aos seus escravos”(art. 26).

Por outro lado, o Código negro, além de legitimar a escravidão, proibia os escravizados de venderem, em qualquer hipótese, produtos oriundos da cana de açúcar e a venda de outros produtos somente era permitida com a autorização expressa do seu senhor.  Também era previsto que os escravizados não poderiam ter propriedade de qualquer bem material, sendo que a aquisição por qualquer meio, mesmo que por presente de terceiros, automaticamente ingressaria no patrimônio do senhor. Se os escravizados não podiam ser partes na Justiça civil (art. 31), eram capazes de ser réus na Justiça criminal (art. 32). Os escravizados poderiam ser castigados com correntes ou com chicotes pelos senhores, “quando estes cressem que os escravos mereceram”, mas não poderiam ser mutilados ou sofrer tortura (art. 42). Interessante o art. 45: dizia que a regulamentação não queria privar os sujeitos (ou seja, os senhores) da faculdade de estipular regras próprias ao seu pessoal, como se faz com suas posses em dinheiro ou outras coisas mobiliárias como os escravizados.

Guardadas as devidas proporções e momentos históricos, o projeto de lei proposto pela Deputada Tabata Amaral, que propõe regulamentar o trabalho sob demanda realizado por meio de plataformas digitais, pode ser entendido como uma espécie de Código Negro do Século XXI. O projeto parte de uma premissa equivocada que é garantir aos trabalhadores a fruição de uma liberdade impossível de se realizar, devido ao simples fato que é contrária ao design e modelo de negócio das plataformas. Não há a possibilidade de realização de uma atividade econômica de tal porte e que mobiliza até centenas de milhares de trabalhadores sem gestão e controle eficientes da mão de obra.

O projeto demonstra ignorância, proposital ou acidental, acerca da natureza e dos elementos constitutivos das plataformas digitais e, também, das consequências para o mundo do trabalho desse desenho institucional proposto pelas empresas.

As plataformas digitais são um modelo empresarial que se utiliza da tecnologia digital e dos meios atuais disponíveis de telecomunicação para a instituição, de forma pura, parcial ou residual, de um “marketplace” ou mercado, no qual agentes interagem para a realização de negócios.

As plataformas de trabalho sob demanda, como as plataformas digitais de serviços de transporte de pessoas ou entrega de mercadorias, são formas deturpadas de plataforma, pois realizam intervenção máxima no mercado que dizem estabelecer, tomando corpo como um real negociante e parte interessada nos negócios, realizando por meio do formato de plataforma a própria atividade econômica que finge intermediar.  A tecnologia é central somente na organização do trabalho e da atividade econômica, não sendo a própria razão de ser dessas empresas. Não há a criação de um setor econômico novo, mas sim o sequestro (ou disrupção) de um setor econômico existente com a implementação de nova organização do trabalho e de controle de trabalhadores. A principal tecnologia utilizada pelas plataformas é a  social, de gerenciamento de trabalhadores, sendo a tecnologia digital escrava e dedicada àquela.

A Loggi, cujo nome não nega a realidade, é uma empresa de logística. A IFood, como comprova também o nome, é uma empresa que realiza transporte de alimentação. A Rappi propõe a entrega rápida de compras. A Uber, que originalmente se chamava UberCab, tem na palavra inglesa a sua natureza de táxi, ou seja, o transporte de passageiros. O nome da Cabify tem a mesma origem, que entrega sua real atividade econômica. Essas empresas atuam efetivamente nos serviços colocados à disposição em sua plataforma, determinando preço e condições do serviço, controlando todas as etapas da prestação do serviço, garantindo seu resultado e inclusive dando condições materiais de sua realização efetiva, como a Uber faz ao alugar espaços em aeroportos para atendimento dos clientes e melhor prestação final do  serviço de transporte. Ou seja, essas empresas utilizam o formato digital de plataforma para executar “business as usual”: realizar atividade econômica baseada em hierarquia e altamente dependente de mão de obra.

Para realizar suas atividades econômicas elas organizam trabalhadores na forma de autônomos para prestarem serviços aos clientes, sejam eles restaurantes, empresas em geral ou indivíduos. Para isso há a necessidade de arregimentação e organização desses trabalhadores. Está no design dessas plataformas que a contratação deve se dar de forma precária, pois para alcançar vantagem no mercado de serviços e permitir a exploração máxima do serviço a partir de um grande número de trabalhadores à disposição, o custo do trabalho deve ser baixo, tanto em relação à remuneração quanto aos encargos trabalhistas. Desta forma, quem financia a atividade econômica das plataformas são os próprios trabalhadores: esse é um dos segredos mais bem guardados do modelo.

Para a contratação desses trabalhadores como autônomos, a justificativa das empresas é de duas ordens: que são empresas tecnológicas que instituem plataformas de ligação de clientes (prestadores e compradores) e que os trabalhadores detêm flexibilidade na prestação dos serviços, por não terem horário rígido de trabalho e pela possibilidade de contratarem com diversos outros tomadores de serviços. Quanto à primeira justificativa, vimos acima que esses empresas não são verdadeiras plataformas, mas sim utilizam a tecnologia digital na forma de plataforma como instrumento para a realização direta de seu negócio, que é a prestação de serviços.

Quanto à segunda desculpa, a flexibilidade, mesmo que se fosse real (na verdade sabemos que não é, como veremos a seguir), esta não é exclusividade nem característica principal do trabalho autônomo. De fato, a flexibilidade de horários é prevista expressamente na Consolidação das Leis de Trabalho para empregados como trabalhadores em serviço externo ou teletrabalho (art. 62), não se aplicando a regulação da duração de trabalho na integralidade. Mesmo quando não incluídos nesse rol, há a possibilidade – que ocorre com frequência – de negociação da flexibilidade pela via do contrato, inclusive no interesse da empresa: a subordinação por programação, pela imposição de metas, é técnica moderna de controle que prescinde de uma chefia imediata e ostensiva. Mas a lei também traz outros exemplos: na Reforma Trabalhista de 2017 foi trazida uma nova figura, o trabalhador intermitente, que é empregado e expressamente um trabalhador sob demanda, que pode negar ofertas de trabalho. Os trabalhadores portuários avulsos da mesma forma são trabalhadores sob demanda, e a eles são destinados todos os direitos trabalhistas. A diferença é que a flexibilidade no contrato de emprego se dá por condições contratuais, legais ou decorrentes da natureza da prestação de serviços, enquanto no trabalho autônomo é mera corolária ou consequência da organização própria da sua atividade econômica.  Não há qualquer incompatibilidade entre flexibilidade e vínculo de emprego e, menos ainda, entre trabalho flexível e gozo de direitos.

Os trabalhadores em plataformas não são tecnicamente autônomos. O trabalho autônomo pressupõe um agente livre de mercado que, munido de informações e capital, abre um negócio próprio, o que pressupõe fixação de preços e condições e criação e manutenção de clientela. Ora, não há qualquer autonomia no trabalho em plataforma: o trabalhador é agregado em negócio alheio, sendo obrigado a custear as ferramentas de trabalho para realizá-lo com hetero-organização e fixação pela empresa contratante do preço e condições, sendo impossível também gerar sua própria clientela. A suposta autonomia seria somente na tal flexibilidade que já vimos que não é característica exclusiva do trabalho autônomo. Há aqui uma confusão entre causa e efeito, tomando-se o efeito como natureza.

Mas se o trabalhador em plataforma não é um trabalhador autônomo, ele estaria no limbo? Legalmente falando não, pois se esses trabalhadores são formalmente contratados como autônomos, a realidade mostra que são empregados, cumprindo todos os requisitos da relação de emprego. O Brasil, ao contrário de grande parte dos países, já recebeu as plataformas com a legislação atualizada em relação às novas formas de subordinação. Desde 2011, com a modificação do art. 6º e seu parágrafo único, os meios informatizados ou telemáticos de comando, controle e supervisão se equiparam aos pessoais para fins de caracterização da subordinação. As plataformas utilizam seus algoritmos e dispositivos tecnológicos para comandar (vá até o restaurante, pegue a comida e leve até o cliente; realize a faxina na casa do cliente; vá até a casa do cliente e o leve aonde ele desejar; atenda dez pedidos e receba uma remuneração extra), controlar (micropenalidades, admoestações, suspensões e dispensas automáticas) e supervisionar (geolocalização, avaliação do trabalho pelos clientes). Quando a subordinação algorítmica não dá conta, as plataformas não se acanham em realizar comandos, controle e supervisões pessoais, por meio de ligações telefônicas e inclusive treinamento e inspeções das ferramentas utilizadas, bem como testes psicotrópicos. Algumas até criaram figuras como o “operador logístico”, uma espécie de capataz sob a forma de terceirizado, para melhor controle dos trabalhadores.

A segunda ignorância do projeto é acerca do significado para o mundo do trabalho da implantação do modelo proposto pelas plataformas digitais. Os planos, indubitavelmente, são de criação de uma fissura legal com o estabelecimento de uma camada da população excluída legalmente dos direitos fundamentais previstos na Constituição. É a normalização de uma subcasta de quase-cidadãos, alijados de direitos fundamentais, em sua maioria negros ou pardos. A partir dessa fissura, os trabalhadores que se mantêm na proteção passam a ser vistos como “privilegiados”, por gozarem de direitos fundamentais. A pretensão é justamente essa divisão entre trabalhadores do século XX e trabalhadores do século XXI; uns cidadãos plenos, mas cuja cidadania é vista como um privilégio; outros, os do século XXI, subcidadãos com proteções ínfimas contra a exploração.

É essa subcategoria de cidadão que é criada pelo projeto em análise, com alguns supostos direitos: liberdade na recusa de trabalho, sem punições diretas ou indiretas; proibição de exigência de exclusividade; piso da categoria ou salário mínimo, calculado por hora de execução do trabalho acrescidos de 30% a título de “tempo de espera”; indenização de décimo terceiro e férias calculadas sobre o “trabalho efetivo”; clareza e acesso do trabalhador às regras de fixação do valor da remuneração; proibição de retenção de gorjetas; indenizações dos instrumentos de trabalho utilizados no serviço; clareza nas regras de cadastramento, descadastramento e avaliação dos plataformizados e acesso aos dados; acesso à Justiça do Trabalho; seguro-desemprego e seguro social como empregado.

Como no Code Noir, o problema do projeto de lei não está nos direitos que pretende instituir, mas sim no que, uma vez transformado em norma, ele legitima e legaliza. Se em alguns momentos ele reconhece a natureza de fato de empregado dos trabalhadores sob demanda (sempre em relação ao Estado, como seguro-desemprego e segurado social na categoria empregado), o projeto tem em sua grande parte nítido caráter excludente.  O cartão de visitas do projeto está no art. 1º, que exclui os trabalhadores da aplicação da Consolidação das Leis do Trabalho, ou seja, os retira da proteção legal dada aos demais trabalhadores. Em seguida, retira da aplicação das normas que pretende estabelecer as verdadeiras plataformas, que denomina de “plataformas de intermediação de serviços abertas”, justamente onde são encontrados trabalhadores autônomos. Assim o projeto é destinado às plataformas digitais que não funcionam como plataformas legitimas.

Talvez o ponto mais grave do projeto seja a previsão de que não descaracteriza essa forma contratual “a realização de treinamentos, a imposição de regras de conduta, a exigência de padrões de qualidade e o monitoramento da realização do serviço”, bastando que seja resguardada a liberdade de aceitar ou não as chamadas de trabalho. Ou seja, o projeto diz que subordinação não será considerada como subordinação. Chega a ser surreal, mesmo em tempos de pós-verdade! Vai além de apenas obstruir a aplicação do parágrafo único do art. 6º, da CLT, mas também faz tábula rasa dos arts. 2º, 3º e 9º, pois não há como se declarar fraude à relação de emprego se os seus elementos são esvaziados. O dispositivo, na prática, equivale ao impedimento do reconhecimento da condição de empregado dos plataformizados.

Outro grande cavalo de Tróia presente no projeto é o afastamento da regra secular de que todo tempo à disposição do empregador é tempo de trabalho, ao fixar que esse último seria somente o tempo de deslocamento até o término do serviço. Ora, para a realização do serviço das plataformas, como em todo negócio, há a necessidade de que trabalhadores fiquem à disposição. A falta de trabalhadores disponíveis impede a execução eficiente de qualquer negócio. Considerar como tempo de trabalho somente aquele de cumprimento de tarefas significa furtar do trabalhador tempo de trabalho. A concessão de indenização pelo “tempo de espera” (que não é espera, é trabalho), somente diminui o quanto de tempo de trabalho é apropriado pelas empresas sem remuneração.

E esse ponto faz com que alguns dos direitos supostamente garantidos pela lei simplesmente caiam por terra. O salário mínimo ou piso garantido pelo projeto seria somente baseado nesse tempo efetivo de cumprimento de tarefas. Ou seja, o salário mínimo mensal previsto na Constituição não precisa ser atingido. O trabalhador pode ficar dez horas à disposição e somente três horas serem consideradas como de efetivo trabalho, o que pode e deve muitas vezes fazer com que os trabalhadores não recebam efetivamente o mínimo constitucional.

Da mesma forma, a indenização pela utilização de equipamentos no serviço é um dispositivo nascido para não ser efetivamente cumprido, pois há a previsão de que o seu valor pode ser fixado por acordo individual. Assim, basta a empresa colocar em seus termos de uso uma quantia simbólica que o dispositivo estará formalmente cumprido, para inglês ver.

Há também alguns requintes de crueldade: sob o pretexto de garantir a liberdade dos trabalhadores sob demanda, impede a criação de períodos de intervalo, descanso e férias para os trabalhadores. Nem o descanso semanal, previsto no Código Negro e até na Bíblia, os trabalhadores terão direto.

É extremamente grave que as normas de proteção à saúde dos trabalhadores sejam deixadas a cargo das próprias empresas. Parece realmente entender que a vida desses subcidadãos, que realizam serviços em geral perigosos e insalubres, não vale grande coisa.

Apesar de parecer uma concessão a possibilidade de os trabalhadores firmarem convenções coletivas, temos aqui mais um problema grave de exclusão de direitos. Atualmente, por expressa disposição legal, os trabalhadores autônomos já podem formar sindicatos (art. 511, CLT) e, portanto, podem firmar convenções coletivas. O projeto de lei retira-lhes o direito à formação de sindicatos e somente prevê o de firmar convenção coletiva.

O projeto também legitima a figura do intermediário entre a plataforma e os plataformizados: o “gato”, conhecido sistema de exploração que ocorre há centenas de anos na figura da marchandage e que é encontrado quase sempre ligado ao trabalho escravo rural e mesmo urbano. Temos agora a legalização da marchandage do Século XXI.

Desta forma, não há como não entender que esse projeto de lei possa ser tido como um Código Negro do Século XXI: sob a suposta pretensão de garantir direitos aos trabalhadores plataformizados, mantém, perpetua, protege e legitima o sistema perverso de exploração, concedendo direitos que não sairão do papel por negar a realidade da organização empresarial e das condições sob as quais o trabalho sob demanda é realizado. A criação de uma subcategoria de cidadãos, despossuídos de direitos fundamentais, certamente agravará a crise social e econômica que vivemos. Novas greves certamente seguirão.

A história é sempre implacável em seus julgamentos.

O Código Negro, ou Code Noir, foi um documento legal editado pelo Rei Luís XIV, pela primeira vez em 1685, com a pretensa intenção de regular o trabalho de negros escravizados nas colônias francesas na América e trazer-lhes algumas garantias. O que se viu, no entanto, ao lado da concessão de alguns míseros direitos nunca concretizados aos negros, foi um rol de restrições aos trabalhadores e, mais do que isso, a manutenção e legitimação da condição servil, causa de todos os males que supostamente pretendia atenuar. A norma era tão pérfida que sobrou até para os judeus, que foram por esse instrumento expulsos dos territórios franceses. O Código Negro é um dos instrumentos legais mais criticados de todos os tempos, sendo que  Voltaire afirmou que “o Código Negro somente serve para mostrar que os juristas consultados por Luís XIV não têm noção do que é direitos humanos”.

O Código concedia os seguintes direitos aos negros escravizados: descanso semanal aos domingos, professar a religião católica e ir às missas, obrigação de o senhor fornecer, aos escravizados com dez ou mais anos de idade, dois potes e meio de farinha de mandioca e três mandiocas de duas libras e meia, além de duas libras de carne de boi salgada ou três libras de peixe (metade disso às crianças escravizadas); proibição de substituição dessa alimentação por cachaça; fornecimento de duas peças de roupa de pano ou quatro medidas de pano, à escolha do senhor.  Havia ainda a previsão de que caso os escravizados não fossem alimentados, vestidos e tratados conforme o Código, eles poderiam alcançar o procurador-geral, que perseguiria o senhor de escravos pelos “crimes e tratamentos bárbaros e desumanos dos senhores em relação aos seus escravos”(art. 26).

Por outro lado, o Código negro, além de legitimar a escravidão, proibia os escravizados de venderem, em qualquer hipótese, produtos oriundos da cana de açúcar e a venda de outros produtos somente era permitida com a autorização expressa do seu senhor.  Também era previsto que os escravizados não poderiam ter propriedade de qualquer bem material, sendo que a aquisição por qualquer meio, mesmo que por presente de terceiros, automaticamente ingressaria no patrimônio do senhor. Se os escravizados não podiam ser partes na Justiça civil (art. 31), eram capazes de ser réus na Justiça criminal (art. 32). Os escravizados poderiam ser castigados com correntes ou com chicotes pelos senhores, “quando estes cressem que os escravos mereceram”, mas não poderiam ser mutilados ou sofrer tortura (art. 42). Interessante o art. 45: dizia que a regulamentação não queria privar os sujeitos (ou seja, os senhores) da faculdade de estipular regras próprias ao seu pessoal, como se faz com suas posses em dinheiro ou outras coisas mobiliárias como os escravizados.

Guardadas as devidas proporções e momentos históricos, o projeto de lei proposto pela Deputada Tabata Amaral, que propõe regulamentar o trabalho sob demanda realizado por meio de plataformas digitais, pode ser entendido como uma espécie de Código Negro do Século XXI. O projeto parte de uma premissa equivocada que é garantir aos trabalhadores a fruição de uma liberdade impossível de se realizar, devido ao simples fato que é contrária ao design e modelo de negócio das plataformas. Não há a possibilidade de realização de uma atividade econômica de tal porte e que mobiliza até centenas de milhares de trabalhadores sem gestão e controle eficientes da mão de obra.

O projeto demonstra ignorância, proposital ou acidental, acerca da natureza e dos elementos constitutivos das plataformas digitais e, também, das consequências para o mundo do trabalho desse desenho institucional proposto pelas empresas.

As plataformas digitais são um modelo empresarial que se utiliza da tecnologia digital e dos meios atuais disponíveis de telecomunicação para a instituição, de forma pura, parcial ou residual, de um “marketplace” ou mercado, no qual agentes interagem para a realização de negócios.

As plataformas de trabalho sob demanda, como as plataformas digitais de serviços de transporte de pessoas ou entrega de mercadorias, são formas deturpadas de plataforma, pois realizam intervenção máxima no mercado que dizem estabelecer, tomando corpo como um real negociante e parte interessada nos negócios, realizando por meio do formato de plataforma a própria atividade econômica que finge intermediar.  A tecnologia é central somente na organização do trabalho e da atividade econômica, não sendo a própria razão de ser dessas empresas. Não há a criação de um setor econômico novo, mas sim o sequestro (ou disrupção) de um setor econômico existente com a implementação de nova organização do trabalho e de controle de trabalhadores. A principal tecnologia utilizada pelas plataformas é a  social, de gerenciamento de trabalhadores, sendo a tecnologia digital escrava e dedicada àquela.

A Loggi, cujo nome não nega a realidade, é uma empresa de logística. A IFood, como comprova também o nome, é uma empresa que realiza transporte de alimentação. A Rappi propõe a entrega rápida de compras. A Uber, que originalmente se chamava UberCab, tem na palavra inglesa a sua natureza de táxi, ou seja, o transporte de passageiros. O nome da Cabify tem a mesma origem, que entrega sua real atividade econômica. Essas empresas atuam efetivamente nos serviços colocados à disposição em sua plataforma, determinando preço e condições do serviço, controlando todas as etapas da prestação do serviço, garantindo seu resultado e inclusive dando condições materiais de sua realização efetiva, como a Uber faz ao alugar espaços em aeroportos para atendimento dos clientes e melhor prestação final do  serviço de transporte. Ou seja, essas empresas utilizam o formato digital de plataforma para executar “business as usual”: realizar atividade econômica baseada em hierarquia e altamente dependente de mão de obra.

Para realizar suas atividades econômicas elas organizam trabalhadores na forma de autônomos para prestarem serviços aos clientes, sejam eles restaurantes, empresas em geral ou indivíduos. Para isso há a necessidade de arregimentação e organização desses trabalhadores. Está no design dessas plataformas que a contratação deve se dar de forma precária, pois para alcançar vantagem no mercado de serviços e permitir a exploração máxima do serviço a partir de um grande número de trabalhadores à disposição, o custo do trabalho deve ser baixo, tanto em relação à remuneração quanto aos encargos trabalhistas. Desta forma, quem financia a atividade econômica das plataformas são os próprios trabalhadores: esse é um dos segredos mais bem guardados do modelo.

Para a contratação desses trabalhadores como autônomos, a justificativa das empresas é de duas ordens: que são empresas tecnológicas que instituem plataformas de ligação de clientes (prestadores e compradores) e que os trabalhadores detêm flexibilidade na prestação dos serviços, por não terem horário rígido de trabalho e pela possibilidade de contratarem com diversos outros tomadores de serviços. Quanto à primeira justificativa, vimos acima que esses empresas não são verdadeiras plataformas, mas sim utilizam a tecnologia digital na forma de plataforma como instrumento para a realização direta de seu negócio, que é a prestação de serviços.

Quanto à segunda desculpa, a flexibilidade, mesmo que se fosse real (na verdade sabemos que não é, como veremos a seguir), esta não é exclusividade nem característica principal do trabalho autônomo. De fato, a flexibilidade de horários é prevista expressamente na Consolidação das Leis de Trabalho para empregados como trabalhadores em serviço externo ou teletrabalho (art. 62), não se aplicando a regulação da duração de trabalho na integralidade. Mesmo quando não incluídos nesse rol, há a possibilidade – que ocorre com frequência – de negociação da flexibilidade pela via do contrato, inclusive no interesse da empresa: a subordinação por programação, pela imposição de metas, é técnica moderna de controle que prescinde de uma chefia imediata e ostensiva. Mas a lei também traz outros exemplos: na Reforma Trabalhista de 2017 foi trazida uma nova figura, o trabalhador intermitente, que é empregado e expressamente um trabalhador sob demanda, que pode negar ofertas de trabalho. Os trabalhadores portuários avulsos da mesma forma são trabalhadores sob demanda, e a eles são destinados todos os direitos trabalhistas. A diferença é que a flexibilidade no contrato de emprego se dá por condições contratuais, legais ou decorrentes da natureza da prestação de serviços, enquanto no trabalho autônomo é mera corolária ou consequência da organização própria da sua atividade econômica.  Não há qualquer incompatibilidade entre flexibilidade e vínculo de emprego e, menos ainda, entre trabalho flexível e gozo de direitos.

Os trabalhadores em plataformas não são tecnicamente autônomos. O trabalho autônomo pressupõe um agente livre de mercado que, munido de informações e capital, abre um negócio próprio, o que pressupõe fixação de preços e condições e criação e manutenção de clientela. Ora, não há qualquer autonomia no trabalho em plataforma: o trabalhador é agregado em negócio alheio, sendo obrigado a custear as ferramentas de trabalho para realizá-lo com hetero-organização e fixação pela empresa contratante do preço e condições, sendo impossível também gerar sua própria clientela. A suposta autonomia seria somente na tal flexibilidade que já vimos que não é característica exclusiva do trabalho autônomo. Há aqui uma confusão entre causa e efeito, tomando-se o efeito como natureza.

Mas se o trabalhador em plataforma não é um trabalhador autônomo, ele estaria no limbo? Legalmente falando não, pois se esses trabalhadores são formalmente contratados como autônomos, a realidade mostra que são empregados, cumprindo todos os requisitos da relação de emprego. O Brasil, ao contrário de grande parte dos países, já recebeu as plataformas com a legislação atualizada em relação às novas formas de subordinação. Desde 2011, com a modificação do art. 6º e seu parágrafo único, os meios informatizados ou telemáticos de comando, controle e supervisão se equiparam aos pessoais para fins de caracterização da subordinação. As plataformas utilizam seus algoritmos e dispositivos tecnológicos para comandar (vá até o restaurante, pegue a comida e leve até o cliente; realize a faxina na casa do cliente; vá até a casa do cliente e o leve aonde ele desejar; atenda dez pedidos e receba uma remuneração extra), controlar (micropenalidades, admoestações, suspensões e dispensas automáticas) e supervisionar (geolocalização, avaliação do trabalho pelos clientes). Quando a subordinação algorítmica não dá conta, as plataformas não se acanham em realizar comandos, controle e supervisões pessoais, por meio de ligações telefônicas e inclusive treinamento e inspeções das ferramentas utilizadas, bem como testes psicotrópicos. Algumas até criaram figuras como o “operador logístico”, uma espécie de capataz sob a forma de terceirizado, para melhor controle dos trabalhadores.

A segunda ignorância do projeto é acerca do significado para o mundo do trabalho da implantação do modelo proposto pelas plataformas digitais. Os planos, indubitavelmente, são de criação de uma fissura legal com o estabelecimento de uma camada da população excluída legalmente dos direitos fundamentais previstos na Constituição. É a normalização de uma subcasta de quase-cidadãos, alijados de direitos fundamentais, em sua maioria negros ou pardos. A partir dessa fissura, os trabalhadores que se mantêm na proteção passam a ser vistos como “privilegiados”, por gozarem de direitos fundamentais. A pretensão é justamente essa divisão entre trabalhadores do século XX e trabalhadores do século XXI; uns cidadãos plenos, mas cuja cidadania é vista como um privilégio; outros, os do século XXI, subcidadãos com proteções ínfimas contra a exploração.

É essa subcategoria de cidadão que é criada pelo projeto em análise, com alguns supostos direitos: liberdade na recusa de trabalho, sem punições diretas ou indiretas; proibição de exigência de exclusividade; piso da categoria ou salário mínimo, calculado por hora de execução do trabalho acrescidos de 30% a título de “tempo de espera”; indenização de décimo terceiro e férias calculadas sobre o “trabalho efetivo”; clareza e acesso do trabalhador às regras de fixação do valor da remuneração; proibição de retenção de gorjetas; indenizações dos instrumentos de trabalho utilizados no serviço; clareza nas regras de cadastramento, descadastramento e avaliação dos plataformizados e acesso aos dados; acesso à Justiça do Trabalho; seguro-desemprego e seguro social como empregado.

Como no Code Noir, o problema do projeto de lei não está nos direitos que pretende instituir, mas sim no que, uma vez transformado em norma, ele legitima e legaliza. Se em alguns momentos ele reconhece a natureza de fato de empregado dos trabalhadores sob demanda (sempre em relação ao Estado, como seguro-desemprego e segurado social na categoria empregado), o projeto tem em sua grande parte nítido caráter excludente.  O cartão de visitas do projeto está no art. 1º, que exclui os trabalhadores da aplicação da Consolidação das Leis do Trabalho, ou seja, os retira da proteção legal dada aos demais trabalhadores. Em seguida, retira da aplicação das normas que pretende estabelecer as verdadeiras plataformas, que denomina de “plataformas de intermediação de serviços abertas”, justamente onde são encontrados trabalhadores autônomos. Assim o projeto é destinado às plataformas digitais que não funcionam como plataformas legitimas.

Talvez o ponto mais grave do projeto seja a previsão de que não descaracteriza essa forma contratual “a realização de treinamentos, a imposição de regras de conduta, a exigência de padrões de qualidade e o monitoramento da realização do serviço”, bastando que seja resguardada a liberdade de aceitar ou não as chamadas de trabalho. Ou seja, o projeto diz que subordinação não será considerada como subordinação. Chega a ser surreal, mesmo em tempos de pós-verdade! Vai além de apenas obstruir a aplicação do parágrafo único do art. 6º, da CLT, mas também faz tábula rasa dos arts. 2º, 3º e 9º, pois não há como se declarar fraude à relação de emprego se os seus elementos são esvaziados. O dispositivo, na prática, equivale ao impedimento do reconhecimento da condição de empregado dos plataformizados.

Outro grande cavalo de Tróia presente no projeto é o afastamento da regra secular de que todo tempo à disposição do empregador é tempo de trabalho, ao fixar que esse último seria somente o tempo de deslocamento até o término do serviço. Ora, para a realização do serviço das plataformas, como em todo negócio, há a necessidade de que trabalhadores fiquem à disposição. A falta de trabalhadores disponíveis impede a execução eficiente de qualquer negócio. Considerar como tempo de trabalho somente aquele de cumprimento de tarefas significa furtar do trabalhador tempo de trabalho. A concessão de indenização pelo “tempo de espera” (que não é espera, é trabalho), somente diminui o quanto de tempo de trabalho é apropriado pelas empresas sem remuneração.

E esse ponto faz com que alguns dos direitos supostamente garantidos pela lei simplesmente caiam por terra. O salário mínimo ou piso garantido pelo projeto seria somente baseado nesse tempo efetivo de cumprimento de tarefas. Ou seja, o salário mínimo mensal previsto na Constituição não precisa ser atingido. O trabalhador pode ficar dez horas à disposição e somente três horas serem consideradas como de efetivo trabalho, o que pode e deve muitas vezes fazer com que os trabalhadores não recebam efetivamente o mínimo constitucional.

Da mesma forma, a indenização pela utilização de equipamentos no serviço é um dispositivo nascido para não ser efetivamente cumprido, pois há a previsão de que o seu valor pode ser fixado por acordo individual. Assim, basta a empresa colocar em seus termos de uso uma quantia simbólica que o dispositivo estará formalmente cumprido, para inglês ver.

Há também alguns requintes de crueldade: sob o pretexto de garantir a liberdade dos trabalhadores sob demanda, impede a criação de períodos de intervalo, descanso e férias para os trabalhadores. Nem o descanso semanal, previsto no Código Negro e até na Bíblia, os trabalhadores terão direto.

É extremamente grave que as normas de proteção à saúde dos trabalhadores sejam deixadas a cargo das próprias empresas. Parece realmente entender que a vida desses subcidadãos, que realizam serviços em geral perigosos e insalubres, não vale grande coisa.

Apesar de parecer uma concessão a possibilidade de os trabalhadores firmarem convenções coletivas, temos aqui mais um problema grave de exclusão de direitos. Atualmente, por expressa disposição legal, os trabalhadores autônomos já podem formar sindicatos (art. 511, CLT) e, portanto, podem firmar convenções coletivas. O projeto de lei retira-lhes o direito à formação de sindicatos e somente prevê o de firmar convenção coletiva.

O projeto também legitima a figura do intermediário entre a plataforma e os plataformizados: o “gato”, conhecido sistema de exploração que ocorre há centenas de anos na figura da marchandage e que é encontrado quase sempre ligado ao trabalho escravo rural e mesmo urbano. Temos agora a legalização da marchandage do Século XXI.

Desta forma, não há como não entender que esse projeto de lei possa ser tido como um Código Negro do Século XXI: sob a suposta pretensão de garantir direitos aos trabalhadores plataformizados, mantém, perpetua, protege e legitima o sistema perverso de exploração, concedendo direitos que não sairão do papel por negar a realidade da organização empresarial e das condições sob as quais o trabalho sob demanda é realizado. A criação de uma subcategoria de cidadãos, despossuídos de direitos fundamentais, certamente agravará a crise social e econômica que vivemos. Novas greves certamente seguirão.

A história é sempre implacável em seus julgamentos.

Rodrigo de Lacerda Carelli é Professor do Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro, Procurador do Trabalho e membro do Coletivo Transforma MP.

Publicado originalmente no Jornal GGN: https://jornalggn.com.br/cidadania/o-projeto-de-regulamentacao-do-trabalho-em-plataformas-um-novo-codigo-negro-por-rodrigo-de-lacerda-carelli/