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AFINAL, QUAL LIBERDADE A ILHA DAS ROSAS E AS PLATAFORMAS DIGITAIS PRETENDEM? RESENHA DO FILME “A INCRÍVEL HISTÓRIA DA ILHA DAS ROSAS” (ITÁLIA, 2020) POR RODRIGO CARELLI

A “Incrível História da Ilha das Rosas” (Itália, 2020) foi uma das atrações da Netflix para o final do ano de 2020. O filme, que já se anuncia de pronto como uma história baseada em fatos reais, mostra a intrépida aventura de Giorgio Rosa, um idealista que resolve construir, na segunda metade da década de 1960, um país autônomo, onde se pudesse exercer plenamente a liberdade. Para isso, como engenheiro, inventa uma forma de montar uma plataforma de quatrocentos metros quadrados em pleno Mar Adriático, fora das 6 milhas de águas territoriais da Itália. Conta para isso com a sua astúcia e as suas próprias mãos, além da ajuda de amigo, filho do dono de um estaleiro, que será seu sócio e componente do governo da nova nação, a Ilha das Rosas.

Após construí-la, o primeiro passo foi montar o governo (distribuindo os cargos entre os amigos), criar selos e uma moeda, além de instituir o Esperanto como língua oficial. A novidade fez com que a ilha tivesse a visita de vários turistas e levou ao recebimento de vários pedidos de cidadania. A Itália não ficou satisfeita com este novo Estado ao lado de sua costa e decidiu pôr fim ao empreendimento. Giorgio tentou se socorrer até ao Conselho da Europa para manter em pé seu sonho, sem êxito, sendo a plataforma destruída de modo épico, em confronto aberto entre os libertários de mãos nuas e peito aberto contra a poderosa armada italiana. Ao terminar o filme, dá vontade de nos empolgarmos a sermos também ávidos defensores da liberdade!

Ah, a liberdade… Na película, o tempo inteiro se fala de liberdade, sem, no entanto, explicar o que isso realmente significa. Os personagens, aliás, discutem isso em algumas cenas, em que são debatidos se algumas atividades, como o jogo de cartas, seriam incluídas na ilha. Em momentos parecia que ninguém sabia muito bem o que era aquilo que pretendiam ali.

Bom, essa é a história contada no filme, o que não corresponde exatamente aos fatos. A Ilha das Rosas foi empreendimento comercial de uma empresa, constituída por Giorgio Rosa com sua esposa Gabriella, e que contava com investidores estrangeiros, como um suíço de fama controversa e um inglês. A ideia de início era somente comercial, Giorgio admitiu, para aproveitar o turismo em Rimini, praia italiana movimentada da Emilia-Romagna, mas que, depois de várias exigências burocráticas governamentais para a instalação de seu empreendimento, ele se rebelou e jurou a liberdade: “Ah, sim? Então agora vou fazer um Estado para mim!” Fica assim mais claro o que significa a liberdade que tanto queria. Em outra entrevista, Giorgio afirmou que, para fugir do fato de que não podia fazer nada que os políticos e os padres não queriam, e, sendo amante da liberdade, a única solução seria se mudar para um país independente, “onde os inteligentes pudessem comandar e os idiotas servirem”, mas que por duas razões não fez isso: que todos os estados eram entrincheirados entre religiões e que não gostaria de se afastar de sua pátria, da sua cidade e da sua família. Então pensou que a solução seria fazer sua própria ilha onde existiria “a verdadeira liberdade, onde pessoas inteligentes poderiam prosperar e os ineptos seriam expulsos”. Agora sim podemos entender plenamente o conceito de liberdade que levou à criação da Ilha das Rosas.

Giorgio não morava na plataforma, e sim em terra firma, em Bolonha, a 117 quilômetros do mar de Rimini. A ilha era somente habitada por Pietro Bernardino, o vigia, que depois teve a companhia de um casal curioso. Os selos nunca foram usados de verdade, serviam somente para a venda a colecionadores e turistas. Ninguém falava Esperanto, nem mesmo Giorgio, que recorreu a um padre para traduzir a Constituição do Estado da Ilha das Rosas. A ilha foi construída não pelas mãoes de Giorgio, mas sim por trabalhadores braçais que realizaram o trabalho em condições climáticas terríveis. E, conforme depoimento de um trabalhador que construiu a plataforma, Giorgio não ficava muito feliz na hora de pagá-los. Na comédia da Netflix, esta faceta fica escondida por detrás da figura cômica de seu sócio (que não existiu na realidade, um estaleiro foi contratado), que falava que iria arregimentar migrantes da pobre região da Calábria e não iria pagá-los para fazer o trabalho de construção da plataforma. Giorgio sempre tratou a ilha como um negócio, uma propriedade, e nada mais. Um negócio que pretendia estar fora do alcance das leis de seu país e que as normas seriam por ele mesmo criadas e impostas. Assim, o sonho não era de construir uma nação livre, mas sim um negócio livre. Trata-se da confusão comum entre propriedade e soberania.

Na mesma época da Ilha das Rosas, foi iniciada uma experiência semelhante: a Sealand. Paddy Roy Bates, ex-militar britânico, ocupou uma plataforma abandonada por seu país, instituiu ali uma nação e declarou-se rei. Posteriormente criou o lema desse país sem povo: “E Mare, Libertas”, ou “no mar, a liberdade”. Em princípio utilizou a plataforma como uma estação de rádio pirata para o público inglês. Sealand passou a vender cidadanias e seu passaporte foi utilizado por vários criminosos, desde traficantes de armas russos, passando por vendedores de haxixe marroquinos e até pelo assassino do costureiro Gianni Versace. Atualmente o negócio do país é vender títulos nobiliárquicos (por 29,90 libras você poder se tornar um lorde, lady, barão ou baronesa), além de, talvez, sua maior jogada: tornar-se um hospedeiro de servidores de dados, que seria o equivalente informacional a um paraíso fiscal, abrigando sites de jogos, esquemas de pirâmide, pornografia infantil e cibersabotagem empresarial. Da mesma forma que na Ilha das Rosas, seu rei não habita a nação da liberdade. Em verdade, não há habitantes permanentes ali, só empregados transitórios para realizar os serviços necessários de manutenção.

Aqui nos aproximamos então ao outro objeto deste texto: as plataformas digitais. Muitas características unem esses dois casos com o cenário das plataformas digitais. A primeira delas é a utilização da ideia da plataforma como desculpa para a fuga das leis. Desde a Declaração de Independência do Ciberespaço realizada sugestivamente em Davos, Suíça, de forma unilateral por John Perry Barlow em 1996, o espírito que move as empresas do Vale do Silício é o descrito por  Lawrence Lessig: o Código (da Internet) é a Lei. Ou seja, a intenção é a busca da liberdade por meio da transformação do algoritmo na lei e, assim,  a negação das normas instituídas pelo governo. A regulação estatal ameaça a liberdade, diz Lessig. A única regulação possível na era da Internet é aquela dos codificadores.

É com base nesse espírito de “liberdade” que se constituem as plataformas digitais, que afirmam pertencerem ao mundo das ideias e dos dígitos e assim negam as soberanias estatais. Seriam entes supra ou extranacionais e supra ou extra-estatais, portanto. Livres do jugo governamental e, assim, de políticos e políticas que impedem a liberdade e a inovação, poderiam então prosperar.

Com esse espírito passam a entrar em todos os países desafiando as leis locais, que são tidas como inapropriadas para regular o ciberespaço e suas empresas imateriais. Invadem mercados e questionam suas regras.  Desafiam a tributação, pois não pertencem ao espaço físico dos países em que atuam. Desejam nada mais e simplesmente a liberdade.

As ideias, no entanto, tal qual em Ilha das Rosas e em Sealand, não correspondem aos fatos. Ninguém habita o ciberespaço, que é um não-lugar.  Nenhuma atividade humana é realizada no ciberespaço, e sim por meio dele, em pontas sempre conectadas a um ponto físico no mundo real. É ali que as transações são efetivamente realizadas e completadas. Suas atividades econômicas têm efeito no mundo real e não em um espaço fictício. A imaterialidade das plataformas digitais pertence a um imaginário, e só sonhadores, desavisados ou espertalhões acreditam nisso. A Uber, por exemplo, não seria nada se não alugasse a infraestrutura física da Amazon para montar sua base de dados, a partir da qual coordena as operações no mundo físico em várias cidades do mundo, apoiando-se inclusive em aluguel de espaços em shoppings centers e aeroportos para seus clientes. O serviço prestado pela Uber não está em um espaço cibernético imaterial, mas sim é realizado diuturnamente nas cidades ao redor do mundo, e para isso realiza todo tipo de atividade necessária: desde lobbies, passando por defesas jurídicas e chegando a atendimento ao público e controle de trabalhadores. A pretensão dos seus clientes não é a utilização de um serviço cibernético, mas sim se locomover ou que comida chegue à sua porta. Assim, também as plataformas digitais tentam se sustentar em uma forçaçâo de barra.

O outro ponto em que todas essas plataformas, tanto as físicas quanto as digitais, tentam se apoiar e não tem consistência nenhuma é a defesa da liberdade.

Liberdade é uma noção tão potente quanto fluida de sentido. Quem não deseja a liberdade? Quem se opõe à liberdade? O que é liberdade? Quem é livre? Livre de quê? Livre do quê? Livre para quê?

Em uma sociedade a liberdade não é encontrada, ela é instituída, como nos mostra Muriel Fabre-Magnan. Em uma sociedade sem regras coletivamente instituídas não há liberdade, e sim barbárie. Liberdade, ao contrário do que dizem os plataformistas, não é poder fazer o que se quer, mas sim que alguém não seja impedido de fazer o que não for proibido. Um mundo mais livre não é um mundo sem leis, mas, ao contrário, aquele com normas que protejam adequadamente as liberdades. Uma sociedade democrática é tida como livre não porque não haja interditos, mas sim porque as proibições são instituídas a partir de regras estatuídas coletivamente, garantindo a liberdade. É o interdito, a proibição, que instituí a liberdade. Uma pessoa é livre não porque pode matar quem ela quiser, mas sim porque não é permitido que a matem.

Tomemos o exemplo da liberdade religiosa. Eu só tenho liberdade religiosa se houver a garantia que ninguém – um Estado ou qualquer pessoa – me imponha uma religião ou os seus valores religiosos. Minha liberdade está fundada na proibição de imposição do pensamento religioso. O proselitismo, ao contrário de ser um ato de liberdade, é um ato atentatório à liberdade religiosa. A inexistência de freios para que religiosos assumam postos governamentais e legislativos são atos que atentam contra a liberdade religiosa, pois possibilitam a imposição de crenças por meio das leis e de atos de governo.

Outro exemplo: a Covid-19. Alguns movimentos se baseiam no discurso da liberdade para negarem ter que cumprir o distanciamento social, fechar temporariamente negócios, usar máscaras e tomar vacinas. A Nova Zelândia está praticamente livre do vírus desde junho de 2020. Não há necessidade de distanciamento social, não se usa máscaras e estádios de rúgbi e arenas de rock estão lotadas. O Natal e o Ano Novo foram realizados com a aglomeração que as pessoas desejassem. A liberdade, enfim, foi alcançada. Como isso se deu? O governo neozelandês atuou fortemente, isolando o país, seguindo todas – todas – as recomendações científicas, fechando (de verdade) todas as atividades econômicas não-essenciais, testando em massa e verificando as pessoas que tiveram contato com os casos positivos. Houve séria restrição de direitos civis e econômicos durante este período, estatuída coletivamente, mas hoje, os negócios prosperam e as pessoas vivem a vida  como antes da pandemia. Qual sociedade é mais livre: a que aceitou as duras restrições ou a que usa o lema da liberdade para não aceitar as medidas de proteção durante a pandemia?

Os libertários desejam tudo, menos liberdade; são em verdade autoritários que desejam potestade. Confundem liberdade com arbítrio. Buscam soberania sob o pretexto de atingir autonomia. Procuram a barbárie, a imposição de sua vontade sobre os demais.

Uma das frases citadas de Giorgio Rosa mostra muito bem a natureza do desejo libertário: a sociedade desejada é aquela em que pode garantir a prosperidade e o comando dos “inteligentes”, a servidão dos “idiotas” e a expulsão de “ineptos”, na qual um negócio pode ser realizado livremente de imposições ambientais, de segurança e trabalhistas. Giorgio não gostava de pagar corretamente seus trabalhadores: as plataformas digitais também não. Enquanto no filme, Giorgio contratava migrantes calabreses que afinal não eram pagos, as plataformas digitais contratam trabalhadores na forma de subemprego, muitas vezes com pagamento de valores ínfimos e havendo casos em que permitem a sonegação de pagamento por trabalhos realizados.

A liberdade que desejam é de serem livres para imporem sua própria vontade sobre os demais. Isso não é liberdade, isso é o que se vê na selva – e não estamos nos referindo aos humanos que lá vivem.

***

Para aprofundar nos estudos sobre a liberdade, recomendo a leitura do seguinte livro:

FABRE-MAGNAN, Muriel. L’institution de la liberte. Paris: PUF, 2018.

Por Rodrigo de Lacerda Carelli

NOVO EPISÓDIO DO CINE TRABALHO NO AR: RAFAEL GROHMANN DEBATE COM RODRIGO CARELLI A SÉRIE “YEARS AND YEARS” (REINO UNIDO, 2018)

Para encerrar bem o ano, está no ar um novo episódio do Podcast Cine Trabalho, em que Rodrigo Carelli recebe Rafael Grohmann, Professor do Mestrado e Doutorado em Comunicação da Universidade do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS) e Coordenador do Laboratório de Pesquisa DigiLabour, que mantém a excepcional newsletter e está de site novo: https://digilabour.com.br.

O pano de fundo da conversa é a série “Years and Years” (Reino Unido, 2018), que favoreceu a discussão sobre as questões do mundo digital e o trabalho. Rolam profundas discussões sobre trabalho em plataforma, trabalho por peça, trabalho do clique, o futuro do trabalho, trans-humanismo e a relação da mídia com o trabalho.

Você pode conferir no Spotify:

Da mesma forma pode conferir o episódio na Apple podcasts, na Google Podcasts, no Youtube ou procure a gente no seu tocador de podcast favorito.

Aqui estão os links de algumas obras citadas:

EKBIA, Hamid R.; NARDI, Bonnie A. Heteromation, and Other Sotories of Comuting and Capitalism. Boston: MIT, 2017.

Documentário “The Cleaners”, sobre o trabalho de moderadores de conteúdo nas redes sociais.

ONG, Jonathan; CABAÑES, Jason. Architects of Networked Disinformation: Behind the Scenes of Troll Accounts and Fake News Produtction in the Philippines. https://doi.org/10.7275/2cq4-5396 Encontrávell em: https://scholarworks.umass.edu/communication_faculty_pubs/74/

PINTO, Álvaro Vieira. O Conceito de Tecnologia. http://www.alvarovieirapinto.org/obras/o-conceito-de-tecnologia/

FRASER, Nancy. O velho está morrendo e o novo não pode nascer. São Paulo: Autonomia Literária, 2020.

CASILLI, Antonio. En attendant les robots. Paris: Seuil, 2019.

DUJARIER, Marie-Anne. Le management désincarné Enquête sur les nouveaux cadres du travail. Paris: La Découverte, 2016.

Para conhecer a Means TV: https://means.tv/

Para saber mais sobre o Projeto FairWork sobre plataformas de trabalho: https://fair.work/en/fw/homepage/

Por fim, a série Years and Years pode ser encontrada na HBO.

Rappi WILL HAVE TO PROVIDE protection from the Coronavirus for its couriers

Rodrigo Carelli

Rappi, the colombian delivery platform present in 9 countries in Latin America,  has committed to implement various actions to protect its couriers. The deal was reached in a class action filed by the Labour Prosecutor’s and applies to the entire Brazilian territory.

The settlement foresees that when connecting to the platform the worker will receive protection information against COVID-19 and will have to, in the first access of each day, answer a survey about his/her health condition. In case signs of the disease are found, they will be advised to seek the State Health System, maintaining home isolation for 14 days or even negative laboratory test, returning only after 3 days or with medical release.

Rappi has also committed to provide financial assistance to couriers diagnosed with COVID-19 or quarantined by public or private health entities for 15 days, extendable for a further 15 days even if not contaminated by Coronavirus. Couriers active for more than 90 days with at least 60 parcels, or couriers with up to 20 days of registration with at least 40 parcels, or couriers with up to 30 days of registration with at least 20 parcels, are eligible for financial assistance.

The amount of the so-called “financial assistance” is a minimum of R$ 100.00 and a maximum of R$ 110.00 per day up to the value of R$ 1,650.00 for 15 days of isolation, values calculated from the average actual earnings. The worker’s account will be suspended from the benefit request.

The company will also supply kits containing masks and alcohol gel or pay a daily allowance in case there is no delivery point in the city where the deliverer works.

It was not the subject of the lawsuit, nor the agreement, the recognition of the existence of an employment relationship.

It is the first settlement of a platform for the protection of workers from the Coronavirus in a class action, and there are ongoing lawsuits by the Labour Prosecutor’s Office and worker’s unions against Ifood, Uber, Loggi, 99 and Cabify with the same subject matter.

(Ação Civil Pública nº 1000405-68.2020.5.02.0056)

The settlement can be find here, in Portuguese:

SUPREMA CORTE DE NOVA IORQUE RECONHECE MOTORISTAS DA UBER COMO EMPREGADOS

Por Rodrigo Carelli

A Divisão de Apelação da Suprema Corte do Estado de Nova Iorque (“Appellate Division, Third Department”) considerou nesta quinta-feira (17/12/2020) os motoristas da Uber como empregados, e não trabalhadores autônomos e, assim, com direito ao seguro-desemprego, confirmando duas decisões da Comissão de recursos de seguro-desemprego (“Unemployment Insurance Appeal Board”) ocorridas em 2019 .

A decisão reafirmou que a existência de uma relação de emprego é uma questão de fato e deve ser observada a partir de diversos fatores, sendo o controle exercido em relação aos trabalhadores o mais importante.

A corte entendeu que há provas suficientes de que a Uber exercia controle suficiente sobre os empregados para estabelecer uma relação de emprego, salientando que a empresa “controla o acesso dos motoristas aos seus consumidores, calcula e recebe o preço das corridas e determina a taxa dos motoristas”. Afirmou ainda que os “motoristas podem escolher a rota para transportar os clientes, mas a Uber fornece o sistema de navegação, controla a localização dos motoristas no aplicativo durante toda a viagem e se reserva no direito de ajustar a tarifa se os motoristas escolherem uma rota ineficiente”. Também foi considerado como elemento indicativo da relação de emprego o fato de que a “Uber também controla o veículo utilizado, proíbe certos comportamentos dos motoristas e usa o seu sistema de pontuação para incentivar e promover motoristas a se comportarem em um modo que mantém ‘um ambiente positivo’ e ‘uma atmosfera divertida no carro’. “

A decisão ainda ressaltou diversos aspectos: quando um cliente solicita o transporte, ele ou ela não escolhe um motorista específico; Uber se resguarda no direito de desativar a conta do motorista se ele ou ela não realiza a atividade pelo menos uma vez ao mês; Uber suporta o ônus da tarifa se por acaso o pagamento não for realizado pelo cliente; Uber requer que os motoristas prestem serviços de maneira profissional com a devida habilidade, cuidado e diligência e que mantenha altos padrões de profissionalismo, serviço e cortesia, sendo proibidos de ter contato físico com o cliente durante a viagem, usar linguagem ou gestos inapropriados ou mesmo entrar em contato com o cliente após o fim da viagem.

A decisão pode ser encontrada aqui:

http://www.courts.state.ny.us/reporter/3dseries/2020/2020_07645.htm

CINE TRABALHO COM PEPE CHAVES – FILME O DILEMA DAS REDES

Está no ar o novo episódio do Podcast do Trab 21, o CINE TRABALHO. Desta feita recebemos PEPE CHAVES, professor da PUCMINAS e da UFRJ, para conversar sobre o filme O DILEMA DAS REDES (EUA, 2020), disponível na Netflix.

O programa discutiu questões como o controle dos trabalhadores por algoritmos, o dilema entre consumidores e trabalhadores, o teletrabalho e sua regulamentação e o impacto do sistema de qualificação por reputação sobre os trabalhadores.

Sugerem-se as seguintes leituras para complementar o que foi discutido no podcast:

OLIVEIRA, Murilo Carvalho Sampaio. O Direito do Trabalho (des)conectado nas plataformas digitais. Teoria Jurídica Contemporânea, v. 4, n. 1, 2019, p. 246-266.

OLIVEIRA, Murilo Carvalho Sampaio; CARELLI, Rodrigo de Lacerda; GRILLO. Conceito e crítica das plataformas digitais. Direito e Práxis, v. 11, n. 4, 2020, p. 2609-2634.

CHAVES JÚNIOR, José eduardo de Resende; OLIVEIRA, Murilo Carvalho Sampaio; OLIVEIRA NETO, Raimundo Dias de. PLATAFORMAS DIGITAIS E VÍNCULO EMPREGATÍCIO? A CARTOGRAFIA DOS INDÍCIOS DE AUTONOMIA, SUBORDINAÇÃO E DEPENDÊNCIA. Encontrável em https://trab21.blog/2020/08/26/plataformas-digitais-e-vinculo-empregaticio-a-cartografia-dos-indicios-de-autonomia-subordinacao-e-dependencia-artigo-de-jose-eduardo-de-resende-chaves-junior-murilo-carvalho-sampaio-oliveira-e-r/

CARELLI, Rodrigo de Lacerda; CAVALCANTI, Tiago Muniz; FONSECA, Vanessa Patriota da. Futuro do Trabalho: os efeitos da Revolução Digital na Sociedade.

Para ouvir o podcast:

https://open.spotify.com/embed-podcast/episode/2VsLyuEUhlFGX7xXfjD8nf

O podcast pode ser acompanhado também no canal do YouTube do Trab21:

CORTE SUPERIOR DA ALEMANHA RECONHECE VÍNCULO DE EMPREGO COM PLATAFORMA COM BASE NA SUBORDINAÇÃO ALGORÍTMICA E GAMIFICAÇÃO

Por Rodrigo Carelli

A nona turma do Bundesarbeitgerichts, equivalente germânico ao Tribunal Superior do Trabalho, reconheceu no início do mês de dezembro de 2020 o vínculo de emprego de trabalhador com plataforma de microtarefas.

O trabalhador realizava microtarefas (“mikrojobs”) disponibilizadas pela plataforma que consistiam em se dirigir à rede varejista e de postos de gasolina para verificar a exposição de produtos de determinadas marcas nas prateleiras, tirando fotos dos produtos e respondendo a perguntas sobre a sua comercialização nas lojas. O trabalhador foi contratado por meio de um termo e condições de uso em que o definia como autônomo. A partir da criação de sua conta, o “usuário” da plataforma poderia receber demandas relacionadas a pontos de venda específicos, não sendo obrigado a aceitar as tarefas oferecidas. O “crowdworker”, ou trabalhador na multidão, ao aceitar o pedido, deveria realizá-lo no prazo de duas horas e conforme as instruções dadas pela plataforma de “crowdwork”.

Em onze meses o trabalhador cumpriu 2978 ordens, até o momento em que a plataforma cessou o seu acesso. O trabalhador ajuizou ação declaratória do vínculo de emprego, e no curso do processo a plataforma rescindiu o contrato do trabalhador de forma cautelar. O trabalhador então emendou a petição para incluir pedidos pecuniários e a proteção contra a despedida injusta.

O trabalhador, que havia perdido a causa nas duas primeiras instâncias, conseguiu reverter parcialmente na corte superior trabalhista. O tribunal entendeu que, conforme o § 611ª do Código Civil Alemão (BGB), a condição de empregado se dá quando o trabalho é realizado para terceiros de acordo com diretrizes do contratante. Se o trabalhador contratado por outra forma contratual demonstrar que na realidade se trata de uma relação de emprego, a designação do contrato é irrelevante.

A Corte Superior afirmou que o “crowdword” realizado por meio de plataformas pode ser reconhecido como uma relação de trabalho. Se o contratante controlar o trabalho por meio da plataforma online por ele operada de tal forma que o contratante não seja livre para organizar seu trabalho quanto a local, tempo e conteúdo, estaremos diante de uma relação de emprego, decidiu o Tribunal.

No caso, o tribunal superior do trabalho alemão entendeu que o trabalhador realizou o trabalho de maneira típica de um empregado, pois estava vinculado a instruções dadas pela plataforma, verificada assim a dependência pessoa. Se é verdade que o trabalhador não era contratualmente obrigado a aceitar as ofertas de trabalho, a estrutura organizacional da plataforma operada pela empresa foi projetada para garantir que os usuários registrados por uma conta aceitassem continuamente um pequeno pacote de microtarefas e os concluísse pessoalmente, um a um, de maneira esparsa, somente sendo disponibilizado outro pacote quando cumprisse o anterior. Os magistrados verificaram que somente atingindo determinado nível no sistema de avaliação, que na prática é aumentado com o número de pedidos aceitos e cumpridos, é permitido aos “usuários” receberem pedidos maiores, contendo várias tarefas, que permitiriam ao trabalhador realizá-los em uma só rota e ter uma remuneração mais alta. Esse sistema de incentivo induziu o trabalhador a realizar continuamente atividades em seu bairro.

Assim, ao mesmo tempo, o tribunal alemão reconheceu a subordinação algorítmica e uma de suas técnicas, a gamificação, como determinantes do critério identificador do vínculo de emprego.

O Tribunal, por outro lado, rejeitou parcialmente os demais pedidos do trabalhador, pois entendeu que a dispensa foi válida e que a remuneração paga como autônomo não deveria ser levada em consideração para o cálculo de um salário em uma relação de emprego, devendo ser arbitrada pelas instâncias inferiores com base nos salários habitualmente pagos a empregados, conforme a definição e tabelas dispostas na lei, para fins dos cálculos dos valores  devidos ao trabalhador.

Bundesarbeitsgericht, Urteil vom 1. Dezember 2020 – 9 AZR 102/20 –
Vorinstanz: Landesarbeitsgericht München, Urteil vom 4. Dezember 2019 – 8 Sa 146/19 –

Foto: Pixabay

VENHA CONFERIR O PODCAST DO CINE TRABALHO SOBRE O “SLEEP DEALER” COM JACKELINE GAMELEIRA

O Trab21 lançou o episódio piloto do podcast Cine Trabalho, com Jackeline Gameleira, pesquisadora do Trab21, grupo de pesquisa vinculado ao Programa de Pós-graduação em Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro.

O Cine trabalho é uma iniciativa que visa refletir com convidados sobre o direito do trabalho e a sociedade a partir de produções artísticas, como filmes e séries. O apresentador do podcast é o professor Rodrigo de Lacerda Carelli, coordenador do Trab21.

Nesse episódio, a discussão girou em torno do filme Sleep Dealer (México/EUA, 2008). Uma das reflexões foi a pergunta de se a tecnologia vai substituir o trabalho humano. Ficou com curiosidade? Venha acompanhar essa conversa e se inscreva para acompanhar os próximos episódios!

As principais referências usadas nesse bate-papo estão na lista abaixo, divididas a partir dos principais temas abordados no podcast.

Reestruturação produtiva ocorrida a partir da década de 70 e discussão sobre a substituição total ou não do trabalho humano pelos robôs:

AMRUTE, Sareeta, ROSENBLAT, Alex e CALLACI, Brian. Why Are Good Jobs Disappearing if Robots Aren’t Taking Them?: Post-Pandemic Automation Part I. 2020a. Disponível em: <https://points.datasociety.net/why-are-good-jobs-disappearing-if-robots-arent-taking-them-9f8d4845302a&gt;. Acesso em: 29 ago. 2020.

AMRUTE, Sareeta, ROSENBLAT, Alex e CALLACI, Brian. The Robots are Just Automated Management Tools: Post-Pandemic Automation Part II. 2020b. Disponível em: <https://points.datasociety.net/the-robots-are-just-automated-management-tools-b9bf28c4434&gt;. Acesso em: 29 ago. 2020.

BENANAV, Aaron. Automation and the future of work -2. New Left Review, II/ 120, (Nov Dec 2019, p. 117-146).

Ecologia individual, social e ambiental:

GUATTARI, Felix. As três ecologias. Tradução: Maria Cristina F. Bittencourt. Campinas: Papirus, 1990.

Debate sobre coleta de dados e rastros digitais:

HAN, Byung-Chul. Psicopolítica – O neoliberalismo e as novas técnicas de poder. Belo Horizonte: Editora, Âyiné, 2018.

LAZZARATO, Maurizzio. Fascismo ou revolução? O neoliberalismo em chave estratégica. São Paulo: N-1 Edições, 2019.

Noção de máquina técnica, máquina de guerra e Revolução:

LAZZARATO, Maurizzio. Fascismo ou revolução? O neoliberalismo em chave estratégica. São Paulo: N-1 Edições, 2019.

Discriminação no ambiente de trabalho das plataformas:

SANTOS, Eneida Maria dos. As plataformas digitais de transporte e o local do negro no mercado de trabalho: o racismo nas configurações institucionais de trabalho no Brasil do Século XXI. 2020.

Forte manifestação da população da Indonésia contra ataques aos direitos dos trabalhadores pode significar o início da reação mundial ao avanço da barbárie

O plano parecia muito simples e infalível, pois seguia à risca a cartilha da Doutrina do Choque de Milton Friedman e da Escola de Chicago: aproveitar o momento de grave crise social, no caso, uma pandemia, para destruir direitos da população. Entretanto, o governo da Indonésia se deparou com forte reação da população, que foi às ruas independentemente do risco de contrair o Coronavírus, em um país com níveis altos de contágio.

Sob a desculpa de atrair investimentos e alterar leis alegadamente arcaicas para aumentar o nível de emprego, o governo indonésio modificou 79 leis e 1200 artigos, totalizando quase mil páginas, modificando sensivelmente o direito do trabalho bem como facilitando a exploração dos recursos naturais do país e ampliando o desmatamento. Ou seja, claramente se trata de uma lei com feições coloniais, preparando os recursos humanos e naturais para serem melhor extraídos por estrangeiros.

Na área trabalhista, a alteração reduziu a indenização pela dispensa de trabalhadores, eliminou a restrições de entrada de imigrantes para trabalho manual, liberou a terceirização, permite o aumento de horas extraordinárias, retirou restrições de contratos precários e conversão dos salários de mensais para horários. Ou seja, segue-se firmemente a cartilha neoliberal. Coincidentemente (ou não), no Brasil a maior parte desses aspectos já foi alterada em 2017 e agora há o movimento do ministro da Economia para alterar o salário mínimo mensal para horário também durante a pandemia.

Os trabalhadores se juntaram a estudantes e resistiram à lei.  A polícia, como sempre, foi chamada para reprimir as manifestações, utilizando gás lacrimogêneo. A violência foi revidada também com violência pelos manifestantes em alguns momentos, que disseram que não sairão das ruas enquanto a lei não for revogada.

A reação dos estudantes e trabalhadores da Indonésia pode ser um sinal que a cartilha neoliberal está esgotada e o limite das populações submetidas pode ter sido atingido.

Por Rodrigo Carelli

O trabalhador diante do espelho: análise dos documentários Cidade de quem corre e Vidas entregues por meio da teoria de Maurizio Lazzarato

Lucas Beraldo do Oliveira*

ATENÇÃO: CONTÉM MUITOS SPOILERS!

“Agora eu não tenho me olhado no espelho para poder imaginar meu futuro. Eu só penso em dar o melhor pro meu filho. Trabalhar, trabalhar, trabalhar para dar o melhor pra ele. Até agora eu não parei no espelho para me perguntar o que eu quero ser no futuro”, diz Vitor dos Santos, 19 anos, pai de um recém-nascido, morador do Centro da cidade do Rio de Janeiro, que trabalha como entregador para empresas-aplicativo[1] pedalando uma bicicleta alugada[2]. O relato de Vitor evidencia uma crise de identidade gerada pela falta de perspectiva de um futuro digno oferecido por seu atual trabalho que afirma ser extenuante, cujo vínculo de emprego não é reconhecido, que lhe toma muitas horas do dia e proporciona um pagamento que reputa tanto como baixo, quanto incerto.

Em que pese sua dúvida sobre si mesmo e seu futuro, o discurso de Vitor muda radicalmente quando este fala sobre a dinâmica laboral em si. Trocando o lirismo angustiante da metáfora do espelho, Vitor fala de quilômetros, de valores, de percursos e horários de forma absolutamente objetiva. Apresenta com clareza o processo de entrega, mostrando os elementos que lhe são conhecidos e como lida com eles. Pedalou tantos quilômetros, recebeu tanto (antes recebia um bom valor, hoje não mais). Fez tantas corridas hoje, assim como fez tantas ontem (sempre menos do que gostaria).

A disparidade entre as representações que Vítor faz dos efeitos do trabalho sobre sua identidade e do processo do trabalho em si são úteis para ilustrar o que o sociólogo italiano Maurizio Lazzarato denomina de duplo investimento sobre subjetividades que compõe a economia (LAZZARATO, 2014, p. 23). Para o autor, a produção de riqueza opera na interseção de dois aparatos heterogêneos de poder: a sujeição social e a servidão maquínica (LAZZARATO, 2014, p. 24). Aproveitando a metáfora de Vitor, o objetivo deste texto é discutir sobre a subjetividade dos trabalhadores no neoliberalismo a partir da perspectiva da Lazzarato recorrendo a dois documentários “espelhados”: A Cidade de quem corre, de 2019, dirigido por Fernando Martins e Vidas entregues, de 2020, cuja direção é de Renato Prata Biar. Espelhados porque, muito parecidos em seu conteúdo, ambos colhem os relatos de três entregadores de bicicleta sobre sua vida e seu labor, sendo o primeiro ambientado na cidade de São Paulo e o segundo no Rio de Janeiro.

Vitor, por sinal, é um dos depoentes do carioca Vidas entregues. A sua declaração de não se olhar no espelho é especialmente bonita, mas está longe de ser um sentimento isolado entre os entregadores. Em Cidade de quem corre, os entregadores Gutierrez Ponciano, Renan de Lima Neto e Caique Oliveira abrem o documentário declarando o que almejam profissionalmente – querem ganhar a vida de outra forma, sendo ator, lutador de MMA ou engenheiro civil respectivamente –, contrastando com o que fazem agora. O sentimento latente destes relatos é que o trabalho oferecido pela gig-economy[3] não é – em arrepio do que diz a propaganda – um bico transitório, que pode se encaixar nas janelas de tempo hábil da rotina dos indivíduos, mas uma atividade que exige esforço extenuante e uma quantidade colossal de tempo em que o entregador fica à disposição da empresa (sem receber por isso remuneração) para ter alguma chance de conseguir o mínimo para seu sustento.

Em Vidas entregues, os depoentes afirmam categoricamente que não se percebem como empreendedores. Se reconhecem como desempregados, desesperados, membros de um contingente que se avoluma nos anos recentes no contexto brasileiro. Querem emprego, carreira, benefícios sociais e o trabalho de entrega é tolerável apenas como uma condição provisória, um episódio – breve, com sorte – de suas vidas profissionais. Nota-se, então, uma imensa insatisfação no contraste entre a atual situação profissional dos depoentes – a atividade de entrega sem vínculo de emprego – e suas aspirações profissionais e pessoais.

Pois bem, Lazzarato denomina de sujeição social a produção social de subjetividades individuais: identidade, sexo, profissão, nacionalidade, enfim, tudo aquilo que determina lugares e papéis na e para a divisão social do trabalho (LAZZARATO, 2014, p. 24). A sujeição opera reduzindo toda multiplicidade[4] a uma série de dualismos – sujeito/objeto, natureza/cultura, indivíduo/sociedade, proprietário/não-proprietário – o que permite ao capitalismo estabelecer hierarquias entre os diferentes papéis (LAZZARATO, 2014, p. 35). A leitura dual da diversidade é totalizadora, enquadrando qualquer diversidade dentro de suas categorias polares (LAZZARATO, 2014, p. 36). A linguagem aparece como tecnologia da sujeição social por excelência, criando uma rede significante e representativa da qual ninguém escapa. É através da linguagem, dentro do processo de sujeição social, que nos concebemos como sujeitos de uma determinada maneira. A sujeição social, portanto, enquadra o indivíduo em um espaço na sociedade, transformando o indivíduo em um sujeito.

O outro aparato do poder que produz subjetividade é a servidão maquínica que, diferentemente da sujeição, opera por meio da dessubjetivação, mobilizando dimensões funcionais e operacionais, não-representativas e assignificantes da existência. Na servidão maquínica, os indivíduos se tornam dividuados, passíveis de serem divididos conforme sua função e atuação em um processo, ou seja, são concebidos enquanto dados de um sistema. Ao invés dos dualismos da sujeição social, a servidão maquínica funciona representando máquinas e pessoas de forma contígua, isto é, na servidão maquínica importam apenas os inputs e outputs de determinado processo, independente se gerados pela máquina ou pelo ser humano. As coisas ou a pessoas são medidas apenas conforme seu papel na produção, comunicação, consumo etc (LAZZARATO, 2014, p. 27). Metaforicamente, tudo é compreendido como uma engrenagem do sistema, seja ele econômico, social ou comunicacional. Enquanto a sujeição recorre a figuras transcendentes, como a noção de homem, mulher, sociedade, natureza, propriedade e outras, a servidão maquínica se importa com a imanência: os processos tais como são, sem precisar recorrer a significantes. Por isso desterritorializa, opera com fluxos decodificados, não centrados no indivíduo ou subjetividade humana, mas em enormes maquinismos. As partes que compõe o trabalho (vivas ou não) podem ser expressas em termos de informação e esta informação não tem mais um referencial antropocêntrico (LAZZARATO, 2014, p. 29).

Importante apontar que a servidão maquínica e a sujeição social não são aparatos de poder antagônicos, pelo contrário, Lazzarato afirma que no neoliberalismo são usados de forma complementar. Para que a servidão maquínica seja instaurada, transformando os seres humanos em objetos mecânicos da máquina, é preciso um trabalho de produção de subjetividades que crie sujeitos que acreditem e defendam determinados valores adequados as relações de produção (LAZZARATO, 2014, p. 33). Ao comprar a força de trabalho, o Capital paga por sujeição (horas de dedicação, disponibilidade e afins), mas o que recebe é o direito de explorar, pela servidão, uma amálgama complexa de órgãos (cérebro, músculos, mãos) e faculdades humanas (cognição, percepção, memória) e, de outro lado, da performance física e intelectual de máquinas, protocolos, sistemas de signos, ciências etc (LAZZARATO, 2014, p. 45).

Assim, apesar de ser nítido o descontentamento dos entregadores cujos relatos constam nos documentários Vidas Entregues e Cidade de quem corre, a eficácia parcial da sujeição social neoliberal se deixa transparecer em algumas falas. Os entregadores entrevistados acreditam na conquista de uma melhor condição de vida pelo “suor”, isto é, pelo esforço, resiliência, disciplina diária. Um dos depoentes afirma que não entende quem diz que eles são classe C, pois sendo eles elementos indispensáveis no fluxo produtivo da cidade deveriam ser referidos como classe A. Os primeiros versos da canção que encerra o documentário Cidade de quem corre são justamente “mais um dia para fazer mais que ontem”[5]. A sujeição social opera, portanto, incutindo – com sucesso pelo menos parcial – um respeito e valorização de uma moral do trabalho, do esforço, da abnegação que permite minimamente que esses indivíduos ocupem esse espaço social útil para o funcionamento do sistema.

A economia capitalista, afirma Lazzarato, é uma economia subjetiva. A subjetividade existe para a máquina, justamente porque no capitalismo as relações de poder derivam da organização de maquinismo (em comparação, as relações de poder feudal que derivavam da esfera pessoal) (LAZZARATO, 2014, p. 29). Mas é no neoliberalismo que ocorre a generalização da servidão maquínica (LAZZARATO, 2014, p. 33). Desde 1980, o paradigma da sujeição mudou. Os trabalhadores não se percebem mais como trabalhando para um chefe, mas sim trabalhando sobre si mesmos, se transformando em capital humano. Esta nova forma de sujeição permite a criação de sujeitos servis ao aparato maquínico seja dos negócios, das comunicações ou das finanças. A big data gerida pelas empresas-aplicativos para quais trabalham os entregadores – assim como outras gigantes do mercado, como Google e Facebook – ilustra perfeitamente a escalada da transformação dos indivíduos em dados, em inputs e outputs, em junções injunções de um processo. Aqui cabe apontar uma ponte sólida com as formulações de Shoshana Zuboff acerca da big data, para quem esta tecnologia representa um componente fundamental da nova lógica e acumulação, que procurar prever e modificar o comportamento humano como meio de produzir receitas e controle de mercado, fundada na indiferença formal entre aqueles que formam sua fonte de dados e aqueles que formam seus alvos finais (ZUBOFF, 2018, p. 18). O que Zuboff descreve como embaralhamento das fronteiras, promovido pela big data, entre o que constitui cliente, o que constitui usuário e o que constituí cidadão, nos termos de Lazzarato seria descrito como um indício do avanço da servidão maquínica que funciona com uma lógica diversa das identidades polares típicas da sujeição social.

Em posse destes conceitos, o desabafo sincero de Vítor sobre não se olhar no espelho adquire novos contornos. Parece uma maneira poética de acusar uma crise na produção de subjetividade ligada a sujeição social no neoliberalismo. O desemprego, o desespero, o desmonte de direitos joga um contingente maciço de pessoas em trabalhos muito insatisfatórios no que concerne a maneira como se percebem socialmente. São trabalhos que colocam os indivíduos em um patamar hierárquico com o qual não se identificam, não conseguem olhar no espelho e crer que no espaço que ocupam. E, no entanto, o neoliberalismo avança a largas braçadas na seara da servidão maquínica, fazendo com o que o trabalhador saiba produzir a ação e informação necessária para manter o processo de produção de riquezas funcionando. Uma interpretação brutal sobre o receio de se olhar no espelho é a de que tal gesto manifesta o sofrimento psíquico do indivíduo transformado em engrenagem bem azeitada de uma máquina que só aumenta e acelera.

Muito em consonância com Deleuze e Guattari, Lazzarato vê um lado positivo na servidão maquínica. A dessubjetivação e desterritorialização do indivíduo promovidas por este aparato de poder têm a capacidade de libertar os humanos da redução totalizante da sujeição social, isto é, superar a imposição de ler a experiência humana a partir de uma dualidade transcendente (LAZZARATO, 2014, p. 36). A servidão lida com imanência, com o real, com o concreto. Porém, no contexto neoliberal, esta produção de subjetividade só tem transformado os indivíduos em capital humano ou em engrenagens maquínicas. Trilhar a vereda que entre o molar e o molecular, que rompe com as hierarquias sociais produzidas pela sujeição social e que desterriotorializa o indivíduo sem torna-lo um dado em um processo de exploração é o caminho da política revolucionária para que nós, junto com Vítor, possamos voltar a nos olhar no espelho e nos reconhecermos como livres.

Lucas Beraldo de Oliveira é Mestrando no Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro, Membro de Grupo de Pesquisas TRAB21.

Bibliografia:

ABÌLIO, Ludmila Costhek. “Plataformas digitais e uberização: Globalização de um Sul administrado? ”. Contracampo: Brazilian Journal of Communication PPGCOM-UFF. Niterói, v. 39, n. 1, p. 12-26, abr./jul. 2020

LAZZARATO, Marizio. Signs and Machines: capitalism and the production of subjectivity. Los Angeles: Semiotext(e), 2014

SLEE, Tom Uberização: a nova onda do trabalho precarizado. São Paulo: Ed. Elefante, 2017.

ZUBOFF, Shoshana. “Big other: capitalismo de vigilância e perspectivas para uma civilização da informação”. In: BRUNO, Fernanda; CARDOSO, Bruno; KANASHIRO, Marta; GUILHON, Luciana et MELGAÇO, Lucas (orgs.). Tecnopolíticas da vigilância: perspectivas da margem. São Paulo: Boitempo, 2018


[1] Termo usado por Ludmila Abílio para se referir às empresas que gerem o trabalho com grande ênfase na utilização de aplicativos. Em: ABÌLIO, Ludmila Costhek. “Plataformas digitais e uberização: Globalização de um Sul administrado? ”. Contracampo: Brazilian Journal of Communication PPGCOM-UFF. Niterói, v. 39, n. 1, p. 12-26, abr./jul. 2020

[2] A Prefeitura do Rio de Janeiro, munícipio de Vítor, tem uma concessão para o aluguel de bicicletas públicas com a empresa TEMBICI e com patrocínio do banco privado Itaú. As bicicletas podem ser alugadas por qualquer um que pague uma mensalidade contratual.

[3] Gig-economy ou “economia do bico” é um termo cunhado para designar a atual tendência de precarização dos trabalhos, com cada vez menos estabilidade e continuidade. Trata-se da generalização de pessoas que cumprem tarefas pequenas, simples e diversificadas para conseguir seu sustento. Em: SLEE, Tom Uberização: a nova onda do trabalho precarizado. São Paulo: Ed. Elefante, 2017.

[4] A noção de multiplicidade utilizada por Lazzarato não se restringe a um campo específico da realidade. O significante é sempre algo transcendente, reduz e limita a complexidade do real. O indivíduo, por exemplo, possuí dentro de si um universo: órgão, bactérias, energias etc. Entende-lo como unidade é apenas uma construção social.

[5] Trata-se da música homônima Cidade de quem corre da banda Mente Matéria. É a terceira faixa do álbum Novo Ciclo, de 2018.

DANIELE BARBOSA É A MAIS NOVA MESTRA DO TRAB21

No dia 29/09/2020, Daniele Barbosa realizou a defesa da dissertação intitulada “A precariedade politicamente induzida e o empreendedor de si mesmo: o caso UBER sob uma perspectiva de diálogo entre BUTLER, DARDOT E LAVAL”, sob a orientação do professor Rodrigo de Lacerda Carelli.Em sua pesquisa, Daniele Barbosa buscou investigar se estaria em curso, no Brasil, uma política de precariedade induzida da vida dos motoristas em plataformas digitais de transporte e de que modo o Estado brasileiro estaria operando para a construção de um enquadramento de empreendedor de si mesmo. A candidata ao título de mestre foi aprovada com elogios pela banca composta pelo seu orientador e pelos professores Márcia Nina Bernardes e Wilson Ramos Filho.

Parabéns, Daniele, a mais nova Mestra do Trab21. O grupo está em festa com sua titulação!