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Plataformas digitais e vínculo empregatício? a cartografia dos indícios de autonomia, subordinação e dependência – artigo de José eduardo de resende chaves júnior, murilo carvalho sampaio oliveira e raimundo dias de oliveira neto

O debate sobre o vínculo empregatício daqueles que laboram nas plataformas digitais é bastante polêmico e controverso, porque envolve o conceito de subordinação jurídica e outros critérios que tentam dar sentido à expressão “sob dependência” constante no art. 3º da CLT.  

No campo pragmático das decisões judiciais, os elementos fáticos extraídos da dilação probatória têm sido usados ora para reconhecer autonomia, ora para reconhecer subordinação, o que demonstra certa perplexidade naquilo que a doutrina denomina de indícios, no sentido de sinais, rastros ou vestígios da ocorrência de autonomia, subordinação ou dependência. Ou seja, os mesmos “sintomas” têm gerado conclusões antagônicas, o que já demonstra a urgência da necessidade de problematizar esses indícios.

Esta pequena reflexão coletiva almeja sistematizar certos indícios conforme as teorias jurídicas correspondentes[1], a fim de auxiliar de forma crítica o debate sobre a existência ou não do vínculo empregatício. Cabe, entretanto, ressaltar que essa discussão sobre indícios não diz respeito apenas às plataformas digitais de trabalho, mas envolve todas aquelas situações fáticas que se encontram na zona cinzenta, a exemplo do debate sobre representantes comerciais, dos transportadores formalmente denominados de autônomos, dos salões de beleza e seus parceiros, dentre outros.

O primeiro momento desta problematização é a contextualização das mudanças nos modos de organização da atividade econômica, isto é, os modelos de empresas e suas consequentes dinâmicas de trabalho, especialmente pela acelerada transformação tecnológica.

Em geral, encontramos três grandes paradigmas de organização empresarial na quadra histórica do capitalismo: o fordismo e sua tônica de gestão baseada na hierarquia e salário por tempo fiscalizado; o toyotismo e sua rede de terceirizações, polivalências no conjunto funcional e maior frequência de pagamentos por metas e resultados; o uberismo com sua inovadora liberdade-flexibilidade na gestão do horário de trabalho, com jornada gerida por novos expedientes tecnológicos de controle e direção (algoritmo), além de um dirigismo econômico e acesso unilateral ao mercado.

Logo, não se pode conceber que o empregado é somente aquele trabalhador que se amolda à empresa fordista, pois o Direito do Trabalho é uma disciplina jurídica que antecede e sucede o modelo empresarial dominante no período de 1910 a 1970. Nesta perspectiva, é preciso ter como diretriz que a noção de empregado deve ser aproximar, num diálogo interdisciplinar, com o trabalhador  assalariado  no sentido de não se apropriar dos frutos do próprio trabalho, não ter acesso direto ao mercado, não participar da definição das regras do negócio (regras do algoritmo) e não ser proprietário da estrutura produtiva, sobretudo da pesada estrutura de rede.

Justamente a investigação jurídica sobre se o trabalhador é ou não empregado é manejada, nos processos trabalhistas, pela busca de sinais, vestígios, sintomas de um estado fático de subordinação. Naturalmente, a atribuição de relevância de um ou outro indício se liga aos conceitos definidos na legislação trabalhista. No caso em discussão, a moldura é a conjunção dos artigos 2º e 3º e parágrafo único do 6º, todos da CLT.

Da leitura atenta do conceito legal de empregador e conforme aportes da doutrina trabalhista, a exemplo de Maurício Delgado[2], já podemos visualizar no quadro abaixo, uma tipologia dos “poderes empregatícios” (primeira coluna) que, conforme diversos métodos (segunda coluna), dirige e assalaria seus trabalhadores. No juslaboralismo, esses mesmos fenômenos são traduzidos em diversos critérios jurídicos, como as múltiplas definições de “subordinação jurídica” – tanto no sentido subjetivo, como no objetivo –, as ideias antigas de dependência econômica e ajenidad ou mesmo a noção inovadora de “subordinação algorítmica”, que estão na “terceira coluna” do quadro abaixo, devidamente associadas às ideias anteriores.

Estas manifestações de poder empregatício se materializam no mundo fático em diversos sinais no cotidiano do trabalhador: havia horário fixo? Recebia ordens? Sofria punições? Laborava na atividade principal da empresa? Tinha metas a cumprir?  Os clientes são da empresa ou do trabalhador? Quem define o preço do trabalho? Há nota mínima para continuar trabalhando?  Trabalhava com exclusividade naquela empresa? Era monitorado e vigiado remotamente? Fornecia apenas força de trabalho? Essas frequentes questões podem ser ilustradas no seguinte quadro:

A intenção deste quadro é a fácil visualização dos aspectos fáticos que são sinais concretos de manifestação do poder patronal, que qualifica o empregador como o responsável, em termos mais amplos, pela organização, direção e apropriação dos resultados econômicos daquela atividade. A denominada zona gris, em que há imbricação de fatores de autonomia e dependência, na verdade, restringe-se a um diminuto rol de atividades, conforme quadro acima.  

No caso do labor intermediado por plataformas digitais, as condições são muito variadas, havendo plataformas que apenas conectam trabalhadores e clientes (“marketplace, que é também uma forma de mercado cativo da plataforma”) e outras que, além dessa função conectora, exercem verdadeira direção e controle sobre o trabalho alheio.

Especificamente nas plataformas tecnológicas intermediadoras de serviços de transporte de passageiros e entrega de mercadorias, suas empresas detentoras sustentam que o trabalho ali realizado por motoristas ou entregadores é autônomo. Em algumas, o cadastro de microempreendedores é condição de ingresso determinada pela própria plataforma.

Cabe indagar, entretanto, se o serviço do motorista/entregador se enquadra na definição legal de autônomo ou de empresário, se o tipo de contratação e a forma como executam a atividade evidenciam a independência e liberdade características do trabalho autônomo e que tipo de posição ocupam na estrutura da atividade-fim do empreendimento com relação às empresas de plataforma, referente à oferta do serviço de transporte de passageiro e/ou entrega de mercadorias.

Nesse caso, é importante levar  em conta que autonomia significa liberdade, vontade livre e manifesta, além de independência não apenas sobre o modo da realização do serviço, como também controlar a organização do modelo de negócio, que implica efetivo poder de negociação quanto ao preço do serviço e ao tempo para a sua realização. Além disso, autonomia empreendedora significa acesso direto, sem intermediação, ao mercado, aos clientes e até mesmo controle sobre o banco de dados de usuários-clientes, ou pelo menos livre acesso a esse banco.

É evidente que a investigação sobre esses fatos – que muitas vezes destoam das propagandas de autonomia e liberdade – transita por alguns dos indícios tratados acima e outros novos, como se vê nesta figura:

É importante ressaltar que o parágrafo único do art. 6° da CLT, introduzido pela Lei 12.551/2011, produziu duas grandes inovações na moldura normativa deste quadro de indícios. Primeiro, inscreveu na literalidade da CLT, pela primeira vez, o critério da “subordinação jurídica”, tendo em vista que havia, até então, um conceito legal aberto e indeterminado. Segundo, viabilizou uma noção de subordinação telemática como produto de manifesta direção (“comando, controle e supervisão”) e agregou ao debate o elemento do trabalho alheio, viabilizando a conexão com a doutrina espanhola da ajenidad.

Diante de tantos indícios e critérios jurídicos todos em conformidade com a moldura da lei, é perceptível que são muitas as possibilidades hermenêuticas para, no caso concreto, se identificar quem é o trabalhador que labora “sob dependência”, como consta na literalidade da CLT. Buscar apenas o indício da hierarquia disciplinar (“recebia ordens”) ou da jornada rígida, é dar exclusividade ao método da gestão fordista do trabalho, baseado na disciplina própria da produção linear, num sistema contemporâneo predominante reticular, maxime quando não há na lei ou na doutrina tal exigência.

Os quadros acima servem para ilustrar que há empregadores que exercem direção, controle e apropriação do trabalho alheio sem recorrer aos indícios clássicos da fábrica fordista.

Autores:

JOSÉ EDUARDO DE RESENDE CHAVES JÚNIOR – Professor Convidado do Programa de pós-graduação (Mestrado e Doutorado) da Faculdade de Direito da UFMG. Doutor em Direitos Fundamentais, Advogado, Desembargador aposentado do TRT-MG.

MURILO CARVALHO SAMPAIO OLIVEIRA – Professor Associado da UFBA – Universidade Federal da Bahia, Pós-doutorando na UFRJ, Doutor em Direito (UFPR) e Juiz do Trabalho Substituto no TRT-BA.

RAIMUNDO DIAS DE OLIVEIRA NETO – Mestrando no Curso de Filosofia da UEVA/CE e Juiz do Trabalho Substituto no TRT-CE

Referências

ASSIS, Anne; COSTA, Joelane; OLIVEIRA, Murilo. O Direito do Trabalho (des)conectado nas plataformas digitais. Revista Teoria Jurídica Contemporânea, v. 4, p. 246-266, 2019. Disponível em https://revistas.ufrj.br/index.php/rjur/article/download/24367/17785 

CHAVES JÚNIOR, José Eduardo de Resende. Chaves, J. E., Jr. (2019). Direito do trabalho 4.0: «controle» e «alienidade» como operadores conceituais para a identificação da relação de emprego no contexto dos aplicativos de trabalho. In Revista do Tribunal do Trabalho da 2ª   Região.   Disponível em https://www.academia.edu/40565485/Direito_do_trabalho_4.0_controle_e_alienidade_como_operadores_conceituais_para_a_identifica%C3%A7%C3%A3o_da_rela%C3%A7%C3%A3o_de_emprego_no_contexto_dos_aplicativos_de_trabalho acesso em 09 jan 2020

CHAVES JUNIOR, José; MENDES, Marcus; OLIVEIRA, Murilo. Subordinação, Dependência e Alienidade no Trânsito do Capitalismo Tecnológico. In: Ana Leme; Bruno Rodrigues; José Chaves Júnior. (Org.). Tecnologias Disruptivas e a Exploração do Trabalho Humano. 1ed.São Paulo: LTr, 2017, v. 1, p. 166-178.

DELGADO, Mauricio Godinho. Curso de direito do trabalho: obra revista e atualizada conforme a lei da reforma trabalhista e inovações normativas e jurisprudenciais posteriores.18. ed.— São Paulo: LTr, 2019.

OLIVEIRA, Murilo. Pandemia e uberização: o trabalhador lutando sozinho na guerra da sobrevivência. Disponível em https://trab21.blog/2020/06/03/pandemia-e-uberizacao-o-trabalhador-lutando-sozinho-na-guerra-da-sobrevivencia/

OLIVEIRA NETO, Raimundo Dias de. Elementos Fático-Jurídicos da Relação de Emprego no Trabalho dos Motoristas de Aplicativo. Revista do Tribunal Superior do Trabalho, São Paulo, v. 86, n. 1, jan./mar 2020, p. 152-167. ROCHA, Andrea Presas; OLIVEIRA, Murilo Carvalho Sampaio. A jurisdição sobre as plataformas digitais e seus ‘trabalhadores parceiros’. 2020. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2020-jul-16/rocha-oliveira-plataformas-digitais-parceiros. Acesso em: 18 jul. 202


[1] Sobre as concepções de subordinação e dependência, vale conferir o verbete “A subordinação jurídica no Direito do Trabalho” disponível em https://enciclopediajuridica.pucsp.br/verbete/374/edicao-1/a-subordinacao-juridica-no-direito-do-trabalho.

[2] DELGADO, Mauricio Godinho. Curso de direito do trabalho: obra revista e atualizada conforme a lei da reforma trabalhista e inovações normativas e jurisprudenciais posteriores.18. ed.— São Paulo: LTr, 2019.

ENEIDA MARIA DOS SANTOS É A MAIS NOVA MESTRA DO TRAB21

Hoje, dia 17/08/2020, Eneida Maria dos Santos realizou a defesa da dissertação intitulada “As plataformas digitais de transporte e o local do negro no mercado de trabalho: o racismo nas configurações institucionais de trabalho no Brasil do Século XXI”, sob a orientação do professor Rodrigo de Lacerda Carelli.

Em sua pesquisa, Santos realizou uma reflexão sobre o racismo estrutural existente na sociedade brasileira, considerando que as plataformas digitais de transporte são uma forma de perpetuar o lugar de trabalho precário do negro na sociedade brasileira. A candidata ao título de mestre foi aprovada com elogios pela banca composta pelo seu orientador e pelos professores Murilo Carvalho Sampaio Oliveira e Philippe de Oliveira Almeida.

Parabéns, Eneida, a mais nova Mestra do Trab21. O grupo está em festa com sua titulação!

EDITORIAL DO FINANCIAL TIMES – PLATAFORMAS DEVEM RECONHECER SEUS TRABALHADORES COMO EMPREGADOS

O Jornal britânico Financial Times, a Bíblia dos negócios no mundo desde 1888, lançou editorial bombástico em defesa do direito do trabalho em tempos de crise, quando para o veículo de mídia ele se torna obviamente necessário, e conclama as plataformas de transporte que reconheçam seus motoristas como empregados e cumpram com seus deveres como empregadores. O jornal, pela sua Comissão Editorial (Editorial Board), entendeu que as plataformas devem seu sucesso até agora, além da inovação, pela fuga das obrigações trabalhistas. Afirma ao final que as empresas devem mostrar que são realmente inovadoras encontrando um modelo de negócios que passe a cumprir com as obrigações em relação aos seus empregados.

O Editorial, que segue o já realizado pelo The New York Times, tem extrema importância, pois vem de um veículo de estirpe liberal com quase 150 anos de existência.

A seguir, o texto traduzido em português:

“A Califórnia, o lar espiritual da gig economy, deu um golpe nos modelos de negócios das empresas de plataformas. A suprema corte do estado decidiu na segunda-feira que Uber e Lyft, duas das maiores empresas de compartilhamento de carros, têm que tratar seus motoristas como empregados e não como trabalhadores autônomos. Embora as empresas possam recorrer, se a decisão se mantiver, elas terão agora que pagar o auxílio-doença, seguro-desemprego e pagamento de férias.

O julgamento é o correto: a gig-economy está há muito tempo em uma área cinza legal, permitindo que as empresas evitem suas obrigações com os trabalhadores. As empresas argumentam que os motoristas realmente trabalham por conta própria e que as empresas operam como um facilitador algorítmico para lhes entregar clientes.

Os críticos dizem, entretanto, que as altas avaliações dessas empresas deficitárias do Vale do Silício devem tanto à exploração quanto à inovação. Uber e Lyft são realmente serviços comuns de reserva de transporte individual que encontraram uma maneira de contornar as proteções normais desfrutadas pelos trabalhadores. Os motoristas podem definir seus próprios horários, mas a partir do momento que ligam o aplicativo, eles devem fazer o que as empresas dizem e só podem aceitar os clientes que lhes são designados. De acordo com este argumento, aqueles que trabalham em tempo integral nas plataformas devem ser considerados trabalhadores como qualquer outro.

O julgamento de segunda-feira significa que a lei da Califórnia está ao lado dos críticos. A aprovação do Projeto de Lei da Assembléia 5 (AB-5) pela legislatura do estado da Califórnia no ano passado teve como objetivo tornar mais difícil para as empresas provar que os trabalhadores eram trabalhadores autônomos. Para contar como autônomos, os trabalhadores têm que estar “livres de direção e controle”, e realizar um serviço que esteja “fora do curso normal dos negócios do empregador”. O processo judicial foi movido pelo procurador-geral do estado que procurou fazer cumprir a nova lei contra as empresas de tecnologia. O juiz disse que o argumento das empresas de que elas se limitam a conectar os empreiteiros com os clientes “contraria a realidade econômica e o bom senso”.

As empresas argumentam que serem forçadas a pagar o salário mínimo e o auxílio-doença devastaria seus negócios em um momento em que as fontes de emprego, mesmo as precárias, são desesperadamente necessárias. Este argumento é pernicioso. As proteções dos trabalhadores são mais necessárias quando as pessoas estão desesperadas; se a alternativa é a pobreza, muitos podem estar muito dispostos a renunciar aos seus direitos. O Coronavírus, também, apenas tornou isto mais urgente. O pagamento por doença é essencial não apenas para proteger a própria saúde dos trabalhadores, mas também a de seus colegas e clientes; se os motoristas continuarem a trabalhar apesar de terem sintomas, isso pode ajudar a espalhar a doença. 

Trabalhadores autônomos e trabalhadores da gig economy têm muitas vezes caído nas brechas nas tentativas dos países de proteger a renda durante a pandemia, incluindo aqueles que trabalham literalmente de bicos nas indústrias criativas. Fechar as brechas legais é um meio de garantir a proteção de que eles necessitam. A longo prazo, a solução é tornar os estados de bem-estar e a regulamentação mais apropriados para o local de trabalho moderno. Isso significa mais benefícios portáteis e garantir que os trabalhadores sejam tratados igualmente à medida que se deslocam entre diferentes empregos; vale a pena aprender com o modelo nórdico de “flexigurança”. 

Os aplicativos de transporte estão enfrentando pressões em múltiplas jurisdições para reconhecer que seus trabalhadores são mais do que prestadores de serviços; um caso semelhante está sendo apreciado atualmente pelo Suprema Corte do Reino Unido. Em vez de continuar insistindo em sua própria interpretação dos fatos e da lei, é hora de Uber e Lyft serem verdadeiramente inovadores – e encontrarem uma maneira de operar enquanto dão a seus profissionais os direitos que lhes são atribuídos pela lei.”

O texto original, em inglês, foi publicado em: https://www.ft.com/content/8adf4de7-90e9-4304-aa6e-71d652946e80

Resenha do episódio “rebobinar ” da série “the twilight zone”

Fonte: Foto publicada no site Plano Crítico. Disponível em: <https://www.planocritico.com/critica-the-twilight-zone-1×03-replay/&gt; Acesso em: 29 jul 2020.

RESENHA DO EPISÓDIO “REBOBINAR” DA SÉRIE “THE TWILIGHT ZONE” – ALÉM DA IMAGINAÇÃO: O RACISMO SOB A PERSPECTIVA DE MAURIZIO LAZZARATO NA OBRA “FASCISMO OU REVOLUÇÃO? O NEOLIBERALISMO EM CHAVE ESTRATÉGICA”

Prezado leitor, cuidado com os spoilers!

Por Eneida Maria dos Santos e Leonardo José Decuzzi, integrantes do grupo de pesquisa Direito do Trabalho no Século XXI (TRAB 21).

O terceiro episódio da série norte americana de ficção científica The Twilight Zone – Além da Imaginação, chama-se Rewind ou Rebobinar, no Brasil, e aborda a crueldade do racismo ao narrar a história de uma mãe que possui uma antiga máquina filmadora que possui a capacidade de rebobinar o tempo e, por meio dela, tentar proteger o seu filho da opressão racista e garantir a sua vida e  futuro a caminho da universidade.

A série atual está sob a direção de Jordan Peele, que também narra os episódios, e foi produzida pela CBS em 2019, sendo adicionada no Brasil no final do mesmo ano ao catálogo da Amazon Prime Video. O seriado é uma releitura da série original criada por Rod Serling que ficou no ar de 1959 até 1964, tornando-se grande sucesso mundial ao abordar a condição humana e a cultura da época. Com finais surpreendentes, combinava histórias fantásticas, críticas sociais e até comédia.

Jordan Peele é destaque em Hollywood pois, além de ator, diretor, narrador e roteirista, venceu o Oscar de Melhor Roteiro com o filme “Corra!”, tendo sido posteriormente indicado ao Oscar de Melhor Filme pela produção do filme “Infiltrado na Klan” de Spike Lee[1]. Peele foi o primeiro negro a receber o Oscar na categoria de Melhor Roteiro, tendo se sobressaído como cineasta pela sua abordagem sobre o racismo, em que leva o telespectador a vivenciar a experiência do oprimido por meio das angústias sofridas pelos personagens.

Maurizio Lazzarato, autor da obra “Fascismo ou Revolução? O neoliberalismo em chave estratégica”, que servirá de marco teórico para análise do episódio Rebobinar da série The Twilight Zone, é filósofo e sociólogo italiano, considerado um dos maiores críticos do capitalismo na atualidade. Estudou ciências políticas e se engajou fortemente nas lutas operárias do movimento Autonomia Operaia na Itália, tendo se exilado na França em 1982. Foi influenciado em suas obras pelo pensamento de Gilles Deleuze e Félix Guattari[2].

Entre seus livros traduzidos para o português, citamos: “Signos, máquinas, subjetividades”, “O governo do homem endividado”, “As Revoluções do Capitalismo – Coleção a Política do Império”, “O governo das desigualdades. Crítica da insegurança neoliberal” e “Trabalho imaterial: formas de vida e produção de subjetividade”, em co-autoria com Antônio Negri, entre outros.

O episódio Rebobinar é impactante e nas primeiras cenas já se notam sinais do que irá ocorrer ao longo da história, quando, na lanchonete de uma rodovia, mãe e filho, enquanto conversam em uma mesa, sentados em posição oposta ao policial, o jovem Dorian deixa cair ketchup no seu peito, imagem esta simbólica quanto ao sangue que poderá surgir ao longo do episódio diante da iminente opressão que será realizada pelo oficial Lasky.

 O filme relata a saga de Nina, uma mãe negra bem sucedida, e de seu filho Dorian, a caminho de ingressar na universidade, os quais sofrem os efeitos da desumanidade e inevitabilidade do racismo estrutural na sociedade contemporânea, representados no filme pelo personagem do policial Lasky. O mérito de Nina em ter ascendido socialmente e ter alcançado posição social de destaque não a excluiu dos efeitos do racismo, muito pelo contrário, a intersecção do gênero e da raça fez com ela sofresse ainda mais o questionamento do Oficial Lasky quanto à sua capacidade de adquirir um veículo importado caro que, segundo sua concepção, somente o branco possuiria.

O seu filho Dorian sofre pela sua mera existência nos espaços privados nos quais o Oficial Lasky entende que lhe seriam inadequados. O policial, representando o padrão heteronormativo do homem branco eurocêntrico, exterioriza o pensamento racista em que se associa o negro à criminalidade. Não é à toa que, ao  rebobinar a câmera filmadora e se tentarem diversos desfechos em que se evitasse um final trágico, Dorian não teve escapatória de ser repreendido e até assassinado, mesmo em momentos em que apenas queria se defender, como  na cena em que retirou a documentação de dentro do carro para mostrar a regularidade da aquisição do veículo de sua mãe, o fato de levantar a mão com o documento foi o suficiente para levar um tiro.

No episódio, os personagens Nina e Dorian retratam uma realidade em que, independentemente do sexo e classe social, o negro sofre os efeitos do racismo por questões alheias ao comportamento do indivíduo. Para Maurizio Lazzarato (2019, p. 46), o racismo é uma “arma de hierarquização e de segregação”. O autor esclarece que tal prática não é novidade da modernidade, consistindo o racismo contemporâneo em “uma mutação do racismo colonial e da guerra contra as populações colonizadas (2019, p. 46).”

 A raça é um critério de divisão social desenvolvido por razões políticas e econômicas ao longo da história, para que fosse possível legitimar práticas como a escravidão, exploração da população das metrópoles, segregação, apartheid e divisão racial do trabalho (LAZZARATO, 2019, p. 46-47). O apartheid social é a nova modalidade de controlar e regular as populações a fim de se implementar a agenda neofascista que tem os mesmos propósitos de uma política neoliberal (LAZZARATO, 2019, p. 50-52).

O Oficial Lasky no filme é o agente que repreende, vigia, segrega e hierarquiza o indivíduo pela cor da sua pele, retratando em um só personagem o comportamento racista existente na sociedade que oprime o negro, retirando-lhe sua autoestima e, em muitos casos, a sua vida, para demonstrar qual lugar pode ocupar na sociedade. Realiza uma vigília constante para evitar que o negro ascenda social e economicamente, porque tem medo de perder seus privilégios.

Mãe e filho não cometem ilegalidade, só o “pecado” de não estarem no lugar socialmente demarcado pelos brancos que não pertence aos negros na visão do policial que representa o racismo. Segundo Lazzarato (2019, p. 48-49), o papel do racismo é o de produzir sujeições e o racismo contemporâneo assegura uma produção de sujeição que é própria do liberalismo que cria no indivíduo a sensação de ser proprietário. A pequena burguesia, construindo um imaginário de possui a “qualidade de proprietário”[3], cria narrativas e desenvolve discursos de ódio sob o pretexto de que se sente roubada e invadida em seu território por aqueles que oprime, apesar de não ser real possuidora de bens materiais.

Cursar a universidade no filme torna-se o desafio de Dorian, em que, de todas as formas o Oficial Lasky tenta impedir a realização, criando obstáculos para que ele não atinja estágios em que alcance a “liberdade da autoconsciência” (LAZZARATO, 2019, p. 190-191). O acesso do negro à educação, especialmente ao ensino superior, é o caminho que o povo afrodescendente possui de mobilização social. Ser bem sucedido através da educação é o meio de se permitir ao negro o acesso a espaços públicos.

A fala da personagem Nina é emblemática e emocionante no momento em que, ao decidir confrontar o policial na porta da faculdade do filho, constata que seu opressor é um homem que tem medo, o medo do racista descrito por Lazzarato (2019, p. 49) de perder seus privilégios e a qualidade de se sentir proprietário. A inconformidade do policial Lasky ao ver os negros ocupando lugares que entende não lhes pertencer, perseguindo-os de diversas maneiras, tentando lhes imputar falsamente atitudes inapropriadas, demonstra o desespero do branco em impedir a ascensão do negro sob pena de perder suas regalias.

Os mecanismos de ódio hoje são um meio de manifestação da violência, cujo “”triunfo” do capital  sobre as classes subalternas” deve ser repetido “deve ser cotidianamente reproduzido (nada de “reprodução” sem “violência que conserva”) (LAZZARATO, 2019, p. 80)”. A violência integra a máquina de guerra do capital e nas articulações dessa guerra estão o fascismo, o racismo, o sexismo, o nacionalismo e as reformas neoliberais (LAZZARATO, 2019, p. 72-73).

Para Lazzarato, o exercício do poder no capitalismo pressupõe violências de classe, raciais e sexuais que, para funcionar, necessita da violência sobre as pessoas e as coisas. O capital, ou melhor, a máquina de guerra do capital, ao mesmo tempo em que produz, destrói, submete as pessoas e a biodiversidade. O poder não atua apenas sobre campo de ação da pessoa, incitando e promovendo comportamentos esperados do sujeito, sem violência, para que ele se sinta “livre” e reaja e realize o comportamento desejado. Age também com violência diretamente para impor sua vontade. Esses dois tipos de violência coexistem, a que é exercida moldando o comportamento das pessoas e a que atua diretamente sobre as pessoas e as coisas. (LAZZARATO, 2019, p. 72- 75).

A “máquina de guerra” (máquina social)[4] capitalista não é somente uma máquina técnica. Essa “máquina” que produz servidões, sujeições, é uma espécie de simbiose de elementos, máquina técnica e homem servil, que reuniria elementos da servidão com as modernas formas de produção, comunicação, coleta e apropriação de dados. Assim, a máquina de guerra capitalista promove uma sujeição, uma “servidão maquínica”[5], uma espécie de simbiose entre máquina técnica e homem, com a sujeição deste, por meio de seus desejos, crenças, aspirações e, também, pela ameaça, violência (LAZZARATO, 2019, p. 107-108).

A “máquina técnica”, não importa o seu grau de evolução ou tecnologia empregada, nunca é isenta, está sempre submetida à estratégia da máquina social[6]. Isto contraria a concepção ilusória neoliberal há muito apregoada de que a técnica, seus dispositivos, suas máquinas, teriam uma atuação isenta, uma ação impessoal, autônoma capaz de se autorregular e autocorrigir. Ao contrário, essa concepção ilusória visa a mascarar as relações de poder que ela incorpora, despersonalizando essas relações com uma narrativa de automatização.

A sociedade, então, seria uma “megamáquina”, que engendra, organiza e agencia em um mesmo movimento os seres humanos e as máquinas técnicas. Uma assemblage, uma montagem, uma junção de elementos, humano e técnico. Assim, máquina social e máquina de guerra, seriam expressões similares. Mas Maurizio Lazzarato considera o conceito “máquina social” genérico e impreciso, com potencial para mascarar as dominações, as relações de guerras e as divisões de classes existentes na sociedade. Adota a expressão “máquina de guerra” que para ele explicita a existência de “dominantes e dominados, relações entre forças a partir das quais se produzem normas, habitus e leis, mas também o “fazer morrer” e a violência (…)” (2019, p. 109).

Para o autor italiano, a guerra do capital, diferentemente da do Estado, não tem por objetivo a defesa ou extensão da soberania, mas a submissão de humanos e das coisas à produção de valor. A máquina de guerra do capital está dirigida ao controle da população “guerra em que os lugares dos vencedores e dos vencidos já estão distribuídos” (2019, p. 68-69). Em princípio, não há inimigo a enfrentar, só vencidos a governar. Mas se o vencido se rebelar, é necessária a adoção de técnicas de segurança, utilizando-se a polícia para gerir essa situação.

Lazzarato (2019, p. 71) lembra que a polícia, para garantir a segurança, “intervém em inúmeros casos em que a situação jurídica não é clara, sem falar daqueles em que, sem referência alguma a fins legais, acompanha o cidadão, como brutal imposição, ao longo de uma via regulada por ordens, ou simplesmente o vigia.” Isto foi muito bem representado no filme pela perseguição do policial Lasky à mãe e ao filho negros, sem nenhum motivo legal, representando as diversas opressões cotidianas sofridas pelos negros no Brasil e no mundo em que são rotineiramente discriminados, agredidos e mortos injustamente.

A máquina de guerra retrata a divisão da sociedade, a existência de forças que se opõem e se manifestam por meio de estratégias de enfrentamento, inclusive técnica, e a possibilidade de resistência e de revolta, podendo constituir uma máquina revolucionária, uma máquina de guerra contra o poder (LAZZARATO, 2019, p. 109-110). A máquina revolucionária foi retratada no episódio por meio do movimento negro e da coletividade afrodescendente que se encontrava em frente à universidade de Dorian. Os negros conjuntamente resistiram pacificamente à ação policial, sacando os celulares e filmando a ação racista da polícia, como uma forma de se proteger e se defender da manifestação do racismo estrutural imanente à máquina de guerra.

No Brasil, a violência policial, máquina de guerra que oprime negros, é expressão do racismo estrutural existente na sociedade brasileira. Segundo o portal jornalístico Deutsche Welle – DW[7], de janeiro a julho de 2019[8], só a polícia do Rio de Janeiro matou 1.075 pessoas, 80% delas negras e esse total seria o dobro de todas as mortes praticadas pela polícia em todo os EUA no mesmo período. A Polícia Militar do Rio de Janeiro ainda ostenta em seu brasão símbolos do Brasil Colonial como a coroa, duas armas cruzadas, folhas de cana de açúcar e café, o que segundo o historiador Luiz Antônio Simas, representaria “o imaginário que acompanha as polícias desde a criação é a contenção dos corpos pretos e a defesa da propriedade nas mãos de pouca gente.”[9]

O movimento Black Lives Matter é fruto dessa violência e se encontra retratado na série na casa do tio de Dorian, e tem sua versão brasileira de Vidas Negras Importam[10]. O movimento representa a constituição de uma máquina de guerra revolucionária, força coletiva que tem um projeto antirracista em que se busca também o engajamento e participação da população branca[11] no combate às hostilidades e iniquidades cometidas pelas instituições e sociedade contra o povo negro.

 Maurizio Lazzarato, no título do livro que é utilizado como referencial teórico para a presente resenha, já sugere duas opções para a realidade: fascismo ou revolução? Continuar-se-ão vivendo tempos apocalípticos em que atuam manifestações neofascistas, racistas e sexistas ou se partirá para a revolução que deve ser social e política (2019, p. 9-16)? Em um mundo dividido por gênero, raça e classe, é ilusória a existência de direitos e garantias para todos. Lazzarato esclarece que “o acesso à educação, saúde, aposentadoria etc, dependerá da propriedade e do patrimônio e não de um direito (2019, p. 51)”.

O final do episódio é enfático em demonstrar como a coletividade é efetiva no combate às opressões e que “a universalidade dos direitos só se faz sob a ameaça de uma revolução possível/real ou de uma guerra” (LAZZARATO, 2019, p. 51). De todos os caminhos tentados para se chegar à universidade, somente aquele em que obteve ajuda de seu tio militante de movimento negro foi eficiente para se alcançar o destino final. Todavia, sem a solidariedade dos colegas universitários que se encontravam na porta da instituição em uma postura que demonstrava consciência de que estavam sendo alvo de ataque racista, o personagem não teria alcançado o seu sonho de cursar a faculdade de cinema.

A compreensão do episódio a partir da leitura do livro de Maurizio Lazzarato leva à conclusão de que Nina e Dorian não teriam como escapar das perseguições do Oficial Lasky, porque sua repreensão não adveio de qualquer ato comissivo ou omissivo dos personagens mas de mera expressão do racismo estrutural existente na sociedade que discrimina aqueles pela cor de sua pele. O autor, no entanto, esclarece que existe uma solução possível por meio de uma atuação revolucionária porque “o acontecimento vem da história” que “rompe sua continuidade e desviando-se de suas restrições, cria novos possíveis, inimagináveis  e impossíveis antes da ruptura, mas cuja atualização se faz recaindo na história, confrontando sua “realidade” (2019, p. 192)”.

[1] Disponível em : <https://gq.globo.com/Cultura/noticia/2019/04/o-que-saber-sobre-volta-de-alem-da-imaginacao.html>; e, <https://jovempan.com.br/entretenimento/tv-e-cinema/twilight-zone-prime-video.html>.  Acesso em:  06 jul 2020.

[2] Disponível em: <https://periodicos.sbu.unicamp.br/ojs/index.php/ideias/article/view/8649504> .  Acesso em: 24 jun 2020.

[3] Lazzarato faz uma analogia do racismo ao antissemitismo de acordo com os ensinamentos de Sarte. O autor italiano reproduz o pensamento do filósofo francês que se aplica ao racismo: “Mas, justamente, é se levantando contra o judeu que de repente tomam consciência de serem proprietários: colocando o Israelita no papel de ladrão, inventam para si a invejável posição de pessoas que poderiam ser roubadas(…)” (2019, p. 49).

[4] Maurizio Lazzarato indica que os termos associados a máquinas derivam da sociedade contemporânea em que “as teorias cyber e do capitalismo cognitivo” entendem que os homens são governados e formatados por máquinas (2019, 107).

[5] A expressão “servidão maquínica” é utilizada por Lazzarato na entrevista concedida a Gustavo Bissoto Gumiero, em 2015, onde afirma que “(…) se pode falar em servidão maquínica através dos meios eletrônicos, mas também se pode falar da servidão maquínica com relação à reforma da produção industrial (…)”.  Disponível em: <https://periodicos.sbu.unicamp.br/ojs/index.php/ideias/article/view/8649504> . Acesso em: 24 jun 2020.

[6] Lazzarato esclarece a origem da expressão máquina social: “Uma das fontes do conceito de “máquina social” que encontramos em Deleuze e Guattari é precisamente O mito da máquina de Lewis Mumford, que descreve a máquina arcaica do Egito dos faraós explorando o trabalho dos escravos” (2019, p. 107).

[7] O dado pode ser encontrado em matéria intitulada “A violência policial contra negros como política de Estado no Brasil”. Disponível em: < https://www.dw.com/pt-br/a-viol%C3%AAncia-policial-contra-negros-como-pol%C3%ADtica-de-estado-no-brasil/a-53729007 >. Acesso em: 27 jul 2020.

[8] O Portal G1 apresenta conclusão similar por meio de dados obtidos junto ao Instituto de Segurança Pública do Rio de Janeiro que informou que 78% dos mortos por intervenção policial no Rio de Janeiro em 2019 foram pretos e pardos. Disponível em: <https://g1.globo.com/rj/rio-de-janeiro/noticia/2020/06/06/pretos-e-pardos-sao-78percent-dos-mortos-em-acoes-policiais-no-rj-em-2019-e-o-negro-que-sofre-essa-inseguranca-diz-mae-de-agatha.ghtml>  .  Acesso em: 28 jul 2020.

[9]Disponível em: < https://www.dw.com/pt-br/a-viol%C3%AAncia-policial-contra-negros-como-pol%C3%ADtica-de-estado-no-brasil/a-53729007 >. Acesso em: 27 jul 2020.

[10] Disponível em: < https://www.geledes.org.br/entenda-por-que-falamos-que-vidas-negras-importam-em-vez-de-todas-as-vidas-importam/> . Acesso em: 28 jul 2020.

[11] Disponível em: <https://brasil.elpais.com/brasil/2020-06-06/vidas-negras-importam-chacoalha-parcela-de-brasileiros-entorpecida-pela-rotina-de-violencia-racista.html>. Acesso em: 28 jul 2020.

REFERÊNCIA:

LAZZARATO, Maurizio. Fascismo ou revolução? O neoliberalismo em chave estratégica. São Paulo: N-1 Edições, 2019.

Como mentir com estatística sobre os trabalhadores em plataformas – artigo de rodrigo carelli

O jornal Valor e a revista Exame nos mostram como enviesar números para dar uma informação inexata

“Como mentir com estatística” é um livro clássico do norte-americano Darrell Huff.[1] Publicado originalmente em 1954, ou seja, há quase setenta anos, não perdeu nenhuma atualidade. O autor mostra, em um texto direto e inteligente, ilustrado por vários exemplos cotidianos, como você pode deturpar a realidade com a aura de cientificidade definitiva proporcionada pelos números. Pois se o autor estivesse ainda vivo e morasse no Brasil, poderia incluir, entre os exemplos dos modos de apresentar falsamente a realidade por meio da estatística, dois casos trazidos a público no final de julho de 2020 que tentaram trazer um retrato do trabalho em plataforma de entrega de mercadorias e alimentos.

 O primeiro deles é uma reportagem do jornal Valor Econômico. Nela é estampado em letras garrafais, como manchete principal: “Placar na Justiça do Trabalho é favorável às empresas de aplicativo”. No subtítulo da manchete vem sublinhado: “Entregadores perdem maioria de ações nos TRTs sobre vínculo de emprego”. Em tempos de Twitter e WhatsApp, sabemos que boa parte dos leitores se informa por aí mesmo, não se dando ao trabalho de ler a reportagem. Pois bem: eu li a reportagem, e verifiquei que os números trazidos contradizem as manchetes, mostrando que são inverídicas.

De início, constatei que os dados trazidos pela reportagem foram apresentados por uma certa empresa denominada Data Lawyer, que seria uma “empresa especializada em estatística e jurimetria”, da qual confesso que nunca tinha ouvido falar. Não há informação de quem a pagou para fazer esse levantamento, nem o método de coleta de dados. Duff ensina que todas essas informações são importantes na análise de dados estatísticos apresentados.

No entanto, vou tomar os números como bons. Seriam então 432 ações julgadas sobre trabalho em plataformas de entrega. Logo no início, no entanto, há um alerta: estão incluídos nesses números também motoristas de Uber, que são cadastrados da mesma forma que entregadores. Ora, então a amostra, e consequentemente a análise, seria relativa a entregadores e motoristas de Uber, o que já faz a manchete não refletir a realidade. Bom, caro leitor, ultrapassemos esse “detalhe”. Das citadas 432 ações trabalhistas, em 172 delas as empresas “ganharam” (sic), “apenas cinco foram favoráveis aos entregadores” (sic), em 81 os “pedidos foram parcialmente aceitos” (sic), em 97 foram fechados acordos, em 40 casos houve desistência e os demais, que pelas minhas contas seriam 37, seriam encerrados por questões processuais. Já se percebe o viés da reportagem pela transposição dos termos jurídicos em linguajar popular, em uma tradução completamente errada. Quando a reportagem afirma que as empresas “ganharam”, está se referindo ao julgamento de improcedência dos pedidos. Quando ela afirma que são “ favoráveis aos entregadores”, a conexão clara é com as decisões de procedência total dos pedidos. Ou seja, a reportagem, por conta e decisão próprias, coloca as procedências parciais (“pedidos parcialmente aceitos”), bem como os acordos realizados, como derrota para os trabalhadores o que não tem nenhum sentido.

As procedências totais são raras na Justiça do Trabalho, pelo fato da existência sempre de um rol extenso de pedidos em cada ação trabalhista, principalmente em ações de reconhecimento de vínculo empregatício. É corriqueiro que um ou outro pedido geralmente não seja contemplado na decisão, o que não retira o caráter de procedência (o nome “procedentes parcialmente” já diz tudo). E em uma ação de reconhecimento de vínculo, geralmente uma procedência parcial significa que o vínculo de emprego foi reconhecido. [2]

Assim, uma análise não enviesada dos números mostra que os trabalhadores “perderam” 39,8% das ações (172). Menos de 40% não é maioria de ações. Além disso, se somarmos em todas as ações em que o trabalhador ganhou algo (ações total e parcialmente procedentes) e acordos, os trabalhadores ganharam mais vezes do que perderam: 183 “vitórias” dos trabalhadores contra 172 “vitórias” dos empresários. As manchetes, assim, não correspondem aos números, mesmo com toda a cansativa ginástica que a reportagem fez. Darrell Huff aponta os problemas detectados como “os numerozinhos que não estão ali”.

Na mesma semana, a revista Exame apresenta reportagem, segundo a sua manchete, que o “Ibope aponta que entregadores de apps não querem carteira assinada”. Na linha fina, complemento da manchete, a revista traz: “Pesquisa aponta que 70% dos entregadores preferem o modelo atual de trabalho, mas sindicato fala em falta de informação sobre direitos”.

Façamos o mesmo exercício proposto por Huff. Apesar do Instituto Ibope ser conhecido, não há na notícia qualquer informação sobre quem financiou a pesquisa. A reportagem cita várias vezes a empresa Ifood durante o texto, mas não há especificação se foi a patrocinadora do estudo.

Logo nos dois primeiros parágrafos, no entanto, as manchetes já desabam por completo. De fato, a pergunta realizada na pesquisa foi: “Você prefere o modelo de trabalho atual, que te permite escolher os dias da semana e os horários em que gostaria de trabalhar, podendo ainda trabalhar com vários aplicativos e definir a melhor forma de compor sua renda, OU gostaria de ter carteira assinada para poder ter acesso a benefícios e direitos como 13º salário, férias, INSS e FGTS, mas tendo que cumprir horários e demais regras das empresas de aplicativos?”

Está embutido na pergunta o que Darrell Huff chama de “número semiligado”. Huff mostra que “se você não consegue provar o que deseja, demonstre alguma outra coisa e finja que são equivalentes. Em meio à confusão resultante do choque entre as estatísticas e a mente humana, dificilmente alguém notará a diferença. O número semiligado é um artifício garantido para deixá-lo em posição de vantagem. Sempre foi”.

Realmente aqui vejo o número semiligado: a pesquisa apura se a pessoa quer flexibilidade de horário e de prestar serviços a vários empregadores ou carteira assinada cumprindo horários e regras do aplicativo. A pessoa então, ao responder ao questionário, teve que optar entre as hipóteses apresentadas, como excludentes uma da outra. Porém, em nenhum momento foi lhe dada a oportunidade de responder que gostaria da carteira assinada e da flexibilidade, que em momento nenhum são incompatíveis pela lei brasileira.

Não é requisito da existência da relação de emprego a exclusividade, podendo o empregado trabalhar para quantas empresas quiser. Além disso, a flexibilidade de horário também é possível, como expressamente prevê a lei nos casos de trabalho externo, teletrabalho e trabalho intermitente. Ou seja, partiu a pesquisa de uma pergunta que provou que entre a flexibilidade e a carteira os trabalhadores prefeririam a flexibilidade, mas em nenhum momento afirmaram que não querem a carteira de trabalho, como diz a manchete. A exclusão da carteira foi dada pela pergunta, e de forma enganosa. Ou seja, a pesquisa prova uma coisa e a conclusão dada é outra diferente.

E dá para perceber quanto enganosa é a pergunta quando ela afirma que há de se optar entre a flexibilidade e as “regras das empresas de aplicatvos”. Ora, todo entregador tem, no atual modelo, que seguir “as regras das empresas de aplicativos” descritas unilateralmente nos termos de uso, com as quais os trabalhadores devem concordar para acessar a plataforma. Além disso, em várias empresas de entrega os horários são determinados pela empresa, em turnos predeterminados pelas empresas a partir de pontuação.

É interessante notar que ambas as reportagens surgem nas vésperas de nova greve dos entregadores de plataformas. Nessa mesma semana, no horário nobre da televisão, são exibidos em um só dia dois comerciais de 30 segundos falando maravilhas acerca dessas plataformas. Cada comercial deste custa em torno de 825 mil reais. Isto é, a comunicação agressiva das empresas de plataforma é ponto-chave para tentar conquistar a opinião pública, frente à torrente de notícias que mostram a realidade da precarização do trabalho de seus empregados. Esse é o típico e clássico papel da propaganda.

Darrell Huff diz que escreveu um livro como uma cartilha de como usar a estatística para enganar, e que poderia até parecer um manual para trapaceiros.  Ele se defende, no entanto, que os únicos que necessitam dessas lições são os homens honestos, que precisam aprender os truques para se defender. Agora precisamos aprender a lidar com o (mau) uso da estatística nas mídias.


[1] HUFF, Darrell. Como mentir com estatística. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2016.

[2] Há a chance de o magistrado somente ter concedido a justiça gratuita ao trabalhador e ter constado que foi procedente em parte, mas aí seria uma atecnia que tende a ser episódica.

Publicado originalmente pelo JOTA no dia 24/07/2020: https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/como-mentir-com-estatistica-sobre-os-trabalhadores-em-plataformas-24072020