Resenha do filme Triângulo da Tristeza

Stella Mendes de Castro Reis[1]

Eneida Maria dos Santos[2]

Jackeline Cristina Gameleira Cerqueira da Silva[3]

ATENÇÃO! CONTÉM SPOILERS!

Escrito e dirigido pelo sueco Ruben Östlund (Suécia, Alemanha, França, Reino Unido, Estados Unidos, 2022), o filme se subdivide em três grandes partes (ou atos), que mesclam elementos de comédia e sátira. A primeira é destinada a apresentar o casal Carl e Yaya, ambos modelos e ela, também, influenciadora digital. A segunda parte desenvolve-se em um navio com um grupo seleto de milionários excêntricos, após Yaya ganhar essa viagem de luxo através de seu trabalho como influenciadora digital. Logo após, ocorre um naufrágio e, partir daí, desponta a terceira parte do filme em que alguns dos passageiros acabam tendo que buscar sobreviver em uma ilha deserta.

Além de evidentes críticas à subordinação econômica e às disparidades no modo de vida das diferentes classes sociais, a partir do longa-metragem é possível problematizar outras características inerentes à sociedade capitalista moderna, tais como as opressões racial e de gênero, que culminam na hierarquização social e a manifestação de desigualdades estruturantes. A resenha irá se debruçar sobre as questões relacionadas ao trabalho no modo de produção capitalista, com enfoque na maneira subalternizada com que as classes trabalhadoras se relacionam com os patrões, na divisão racial do trabalho e na problemática que gira em torno do trabalho de produção de conteúdo digital.

As críticas ao sistema capitalista em sua dimensão de classes estão presentes na maior parte do filme de forma cômica e até mesmo vulgarizada, como é o caso do embate ideológico travado entre o capitão do navio, estadunidense comunista, e um dos passageiros, o russo capitalista. Porém, a principal demonstração do antagonismo de classe aparece de forma mais sutil, porém reveladora: ao longo de basicamente todo o filme, as cenas são compostas por passageiros da classe abastada e trabalhadores, contrastando a presença de um à presença do outro. Harvey (2013, p. 78-79), ao abordar o conceito de classe para Marx, elucida que a ascensão da classe capitalista ocorre junta e paralelamente à formação de um proletariado. Ou seja, reforça a existência de uma oposição simbiótica e ao mesmo tempo indispensável entre uma classe, que dirige o processo de trabalho e adquire para si os frutos desse processo, e outra classe, cuja característica central é a venda de sua força de trabalho como meio de subsistência, de modo que uma não subsiste sem a outra. Tal relação simbiótica, portanto, é retratada ao longo do filme.

Ainda sob a perspectiva da crítica direcionada à burguesia, o ponto alto da segunda parte do filme é representado pelo jantar de luxo servido em meio à tempestade, sendo o estopim de uma grande indigestão caótica que atinge praticamente toda a tripulação. Trata-se da demonstração e do reforço, ainda que simbólico, dos traços humanos de uma classe que dissemina, por meio de ideologias, um modo de vida incompatível de ser usufruído por todos, conquanto seja perseguido e idealizado muitas das vezes, pelos sujeitos dominados, como pode ser observado através do comportamento de Yaya. Concomitantemente, trata-se de analogia satírica às sujeiras que permeiam os atos dessa classe privilegiada, em uma referência à dominação e à exploração, sendo tais sujeiras expostas na cena de forma crua, através de uma espécie de escatologia cômica.

O terceiro ato expõe um modelo social dissonante daquele retratado na primeira e segunda partes, demonstrando uma inversão dos papéis sociais desempenhados pelas personagens, sobretudo no que concerne à divisão do trabalho. Após o naufrágio, tendo que buscar uma organização em que garanta a sobrevivência, a camareira Abigail assume a liderança do grupo em virtude de sua capacidade de pescar e angariar comida. Tal situação pode ser encarada, em certa medida, como uma evidência da centralidade do trabalho humano. Desde Hegel, o trabalho já havia sido considerado a essência do ser humano, ao passo que Marx corporifica tal atividade, substituindo o trabalho espiritual abstrato pela atividade material objetiva. Em seu debate filosófico exposto na obra “Manuscritos Econômico-Filosóficos”, o autor rompe com o idealismo hegeliano, assumindo como método o materialismo histórico-dialético e reforçando a importância histórica do trabalho na formação do ser social (Marx, 2008). O trabalho é tangenciado, portanto, como uma autoatividade e uma objetivação, características que se perdem após o desenvolvimento da sociedade de classes, mormente com a ascensão do capitalismo enquanto modelo econômico e social hegemônico, no qual passa a ser tratado como mercadoria, fato bastante evidenciado na obra ora em debate.

Simultaneamente ao debate de classes, a divisão racial do trabalho é retratada no filme diante da racialização da classe trabalhadora, que envolve profissionais de descendência asiática e merece reflexão por meio da teoria crítica racial, cujo aporte teórico se faz necessário para a compreensão da referida dinâmica laboral. O movimento estuda a relação entre raça, racismo e poder e define a raça como uma construção social mutável, “que a sociedade inventa, manipula e descarta conforme lhe convém” (Delgado; Stefancic, 2021, p. 34). Com base em tal entendimento, o movimento possui desdobramentos em estudos raciais, como sob a perspectiva dos latinos (LatCrit) e asiáticos (AsianCrit), e suas intersecções de gênero e suas abordagens críticas feministas, interseccionais, incluídos os teóricos LGBT (QueerCrit).

O racismo, assim como o patriarcado, por exemplo, são sistemas de opressão estruturais do capitalismo que divide a classe trabalhadora, hierarquizando-a com base em tais construções sociais (Robinson, 2020). Para Nancy Fraser (2018), revisitando a teoria marxista, o racismo cumpre o papel de hierarquizar trabalhadores, sendo os racializados, historicamente escravizados, dependentes e não ou mal pagos, expropriados de sua força de trabalho, enquanto aos não racializados, haveria a concessão do status de trabalhador, ainda explorado, mas não expropriado.

Nesse sentido, a hierarquia entre trabalhadores é evidente no filme, especialmente na parte que se passa dentro do iate, em que profissionais brancos com padrão de beleza normativo da branquitude relacionam-se diretamente com os hóspedes do barco, enquanto os racializados ficam invisíveis, instalando-se inclusive no andar mais baixo da embarcação e desempenhando as tarefas mais subalternizadas. Tal realidade também é esclarecida por acadêmicos da Teoria Crítica Racial, como Cheryl I. Harris (1995, p. 286), que defende o conceito de branquitude como propriedade em que seus privilégios permitem que “trabalhadores brancos frequentemente se identifiquem primeiramente como brancos e não como trabalhadores porque, por meio de sua branquitude, eles têm acesso a benefícios públicos, privados e psicológicos” (tradução nossa).

Ademais, o filme também faz emergir críticas ao trabalho de influenciadora digital desempenhado por Yaya, que possibilitou a ela e a seu companheiro a viagem na luxuosa embarcação. O trabalho de criação de conteúdo digital está inserido no sistema do estrelato, por meio do qual plataformas, como Instagram, Youtube e Twitch, organizam as pessoas trabalhadoras. Nesse sistema, por meio da análise proposta por Jaron Lanier (2014) e verificada na plataforma da Twitch, por exemplo (Silva, 2022), apenas uma pequena parcela de pessoas compõe o topo, com a maior parte da audiência e das vantagens, como a maior remuneração financeira. A base, composta pela maioria das pessoas criadoras e consumidoras de conteúdo, é responsável por sustentar o sistema, sem, no entanto, receber uma retribuição justa pelo trabalho desempenhado.

Dessa forma, na tentativa de ascensão ao topo do sistema do estrelato, muitas pessoas criadoras de conteúdo, como Yaya, buscam aparentar já possuírem status mais elevado dentro da plataforma e, por conseguinte, dentro da própria sociedade. Contudo, essa aparência não retrata a realidade concreta, marcada por baixa ou nenhuma remuneração, característica de uma classe social desprivilegiada. Trata-se de um jogo de aparências, em que a pessoa simula a realidade que gostaria de vivenciar, tentando, com isso, torná-la concreta. Se durante esse processo, a pessoa criadora de conteúdo for aceita no grupo social mais elevado, a tendência existente é que, a partir desses contatos, ela consiga ascender progressivamente, conquistando a visibilidade e as vantagens desse grupo social. Observa-se, portanto, um trabalho por esperança (Kuhnen; Corrigan, 2013), em que a pessoa trabalhadora investe sua baixa remuneração do presente, esperando conquistar, no futuro, retribuição financeira adequada, reconhecimento social e demais vantagens imanentes à sociedade de classes.

Ressalta-se, por fim, que, apesar de não conter críticas inovadoras, o filme, com seu formato cômico e satírico, apresenta-as de modo atraente, abrindo margem para relevantes questionamentos acerca das relações de trabalho desenvolvidas no capitalismo, as disparidades entre classes sociais, além das relações verticais envolvendo opressões de raça e gênero e seus desdobramentos na contemporaneidade.

Referências

DELGADO, Richard, STEFANCIC, Jean. Teoria crítica da raça: uma introdução. São Paulo: Editora Contracorrente, 2021.

FRASER, Nancy (2018c): “Is Capitalism Necessarily Racist?” [2018 Presidential Address, APA Eastern Division], Proceedings and Addresses of the American Philosophical Association, vol. 92, pp. 21–42.

HARRIS, Cheryl I. Whiteness as Property. In: CRENSHAW, Kimberlé, GOTANDA, Neil, PELLER, Gary, THOMAS, Kendall(ed.). Critical Race Theory: the key writings that formed the movement. New York: The New Press, 1995.

HARVEY, David. Os Limites do Capital. São Paulo: Boitempo, 2013.

KUEHN, Kathleen; CORRIGAN, Thomas F. Hope labor: The role of employment prospects in online social production. The political economy of communication, v. 1, n. 1, 2013.

LANIER, Jaron. Who owns the future?. Simon and Schuster, 2014.

MARX, Karl. Manuscritos Econômico-Filosóficos. São Paulo: Boitempo, 2008.

ROBINSON, Cedric J. Black Marxism: the making of the black radical tradition. United States: University of North Carolina Press, 2020.

SILVA, Jackeline Cristina Gameleira Cerqueira da. Streamers sob as regras do jogo da Twitch: desafios jurídicos do trabalho em uma plataforma digital social. Orientador: Rodrigo Carelli. 2022. Dissertação (Mestrado em direito) – Programa de Pós Graduação em Direito – UFRJ, [S. l.], 2022.


[1] Mestranda em Direito pelo PPGD – UFRJ, pesquisadora dos grupos TRAB 21 e CIRT.

[2] Doutoranda em Direito pelo PPGD-UFRJ, pesquisadora do grupo TRAB21.

[3] Mestra em Direito pelo PPGD-UFRJ, pesquisadora do grupo TRAB21.

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