AS LIÇÕES EM MATÉRIA TRABALHISTA DOS ESTADOS UNIDOS DA AMÉRICA PARA O SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL

O governo estadunidense aponta em nova norma que as fraudes à relação de emprego são um fenômeno grave, que traz prejuízo à sociedade e para a economia como um todo

Rodrigo de Lacerda Carelli, Professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro

O Supremo Tribunal Federal-STF está em guerra contra a Justiça do Trabalho. Aponta o dedo para a Especializada e diz que não está a respeitar suas supremas decisões. A Justiça do Trabalho, de seu lado, nega a inobservância de qualquer decisão vinculante, apenas cumpre com o seu ofício quase secular de aplicar o direito do trabalho, em especial o princípio da primazia da realidade sobre a forma. A Suprema Corte brasileira, em tréplica, afirma que contratos hão de ser respeitados, em homenagem ao princípio da liberdade.

Como demonstrei em outro lugar, e tantos também acusaram, a Suprema Corte brasileira está tendo uma dificuldade muito grande de entender o direito do trabalho e a Constituição de 1988. Mais do que isso, parece não compreender o papel da relação de emprego e das outras formas relações de trabalho em uma sociedade capitalista, aplicando uma ideologia muito afastada de qualquer outro país no mundo, entendendo realizar uma análise econômica que fica muito longe de ser algo digno do nome que leva.

Os ministros do STF poderiam observar o que acontece na “Terra dos Livres”, como se autoproclamam os Estados Unidos da América, para verificarem como a noção de “liberdade” que estão aplicando nas relações de trabalho nada tem a ver com o que se propõe naquele país. E, de quebra, como se faz uma verdadeira análise econômica do direito.

Acaba de ser editada, em 9 de janeiro de 2024, uma “Final Rule” pelo Departamento do Trabalho estadunidense (o Ministério do Trabalho deles), regulamentando a Fair Labor Standards Act, lei federal que garante diversos direitos trabalhistas, um tipo de CLT deles. O objetivo do novo regulamento é substituir outro editado pelo órgão em 2021 sob a batuta de Donald Trump que, sob o pretexto de deixar mais clara a divisão entre empregado (employee) e trabalhador autônomo (independent contractor), tornava a caracterização da relação de emprego mais difícil e se afastava completamente da jurisprudência consolidada. O gol, assim, é de retornar aos critérios consagrados por anos de discussões judiciais e “ajudar empregadores e trabalhadores a melhor entenderem quando um trabalhador está na categoria de empregado e quando ele pode ser considerado um trabalhador autônomo para fins trabalhistas”.

O governo estadunidense entende que a misclassification, que chamamos aqui de fraude à relação de emprego, é “um problema sério que impacta os direitos dos trabalhadores ao salário mínimo e ao pagamento de horas extraordinárias, fomenta o furto de salários (wage theft), permite a alguns empregadores derrotar deslealmente seus concorrentes cumpridores das leis e prejudica a economia como um todo.” Fraudar a relação de emprego “é uma questão muito grave que priva os trabalhadores dos direitos e proteções básicas”.

A nova norma regulamentadora é uma aula, não só de direito do trabalho, mas de semântica e de capitalismo. Ela deixa claro que as figuras de empregado e trabalhador autônomo coexistem na sociedade capitalista, mas cada um exercendo seu papel, não sendo intercambiáveis, como meras opções do empregador de forma contratual, não sendo uma opção do empresário, como parece ser a crença de certos ministros do STF.

Ao contrário do que acontece no STF, o governo estadunidense ouviu os especialistas e entidades interessadas, discutindo em documento de mais de 300 páginas todos os principais argumentos levantados na discussão pública. Também diversamente do que ocorre no STF, foi realizada uma análise econômica do fenômeno, e não um mero apanhado de palavras de ordem ou conceitos deslocados de sua função; nem se diga a utilização da palavra “economia” como um “super trunfo”, como tem ocorrido com frequência na nossa Suprema Corte.

Foi realizada uma análise estatística pormenorizada para entender quem é trabalhador autônomo nos Estados Unidos, em qual setor da economia ele trabalha, idade, raça e educação. Verificou-se ali que há um total de 10,6 milhões de trabalhadores autônomos nos Estados Unidos, o que representa 14,99% da força de trabalho. As pesquisas trazidas mostram que de 10 a 30% dos empregadores nos Estados Unidos fraudam a relação de emprego, o que pode chegar a 9 por cento de todos os trabalhadores autônomos. Afirma também o documento que a fraude atinge desproporcionalmente negros, indígenas e pessoas de cor, ou seja, imigrantes em geral.

Além disso, lembra a regulamentação que um dos objetivos do direito do trabalho é a regulação da concorrência desleal (unfair method(s) of competition in commerce). Com a fraude, o mau empregador corta custos do trabalho e prejudica seus concorrentes, por poder oferecer orçamentos mais baratos, deixando os empresários cumpridores da lei em desvantagem.

Foi realizada uma ampla análise dos custos da fraude trabalhista (misclassification of independent contractors). Foi verificado que os trabalhadores autônomos geralmente não recebem benefícios de saúde e de aposentadoria de seus empregadores. Os empregados têm maior chance de terem seguro saúde em relação aos autônomos e, enquanto 42% dos empregados recolhem para aposentadoria, somente 8 por cento dos trabalhadores por conta própria realizam recolhimentos. O governo deixa claro que “baixas poupanças de aposentadoria podem resultar em um fardo tributário de longo termo a todos os Estadunidenses devido ao incremento da necessidade de programas sociais assistenciais”.   Em uma comparação, verificou-se que enquanto um empregado poderia ter benefícios anuais no valor de 15.547 dólares, o autônomo teria 6.084 dólares.

O impacto no fisco também foi estudado, verificando-se uma perda de ingressos tributários e aumento de custo para os estados e o governo federal.

Além da perda dos direitos trabalhistas, como não pagamento de horas extraordinárias com o acréscimo de 50 por cento após 40 horas semanais, como é previsto na lei estadunidense, foi também constatado que 13% dos trabalhadores autônomos não recebem efetivamente o salário-mínimo, em contraste com apenas 2 por cento dos empregados. 29 por cento dos trabalhadores autônomos fazem horas extraordinárias em comparação com 17 por cento dos empregados. Além disso, a sobrejornada é bem maior para os trabalhadores autônomos do que para empregados, 15,4 horas em média contra 11,8.

Em relação aos salários, não se verificou discrepância entre os trabalhadores autônomos e empregados na mesma função. No entanto, foi encontrado em uma pesquisa específica em Washington DC que a troca de um emprego por um contrato de trabalho autônomo poderia ser associada à perda de 20 a 50 por cento na renda e que a ida de uma condição de autônomo para empregado gerava de 65 a 85 por cento de aumento nos salários. Também foi constatado na pesquisa que, em funções de baixa renda, o salário dobrava no percurso de uma condição de autônomo para a de empregado.

Mas vamos para o que diz a norma, que pretende modificar a situação fática da misclassification.

Ela dispõe que a existência de um vínculo de emprego é uma questão de “realidade econômica” (economic reality), a partir da verificação uma série de fatores ou indícios que vão (ou não) indicar a existência da dependência econômica (economic dependence), critério maior para a verificação da condição de empregado. Assim, em primeiro lugar, a normativa estadunidense se aproxima daquilo que é exercido em todo o mundo desenvolvido e preconizado pela Organização Internacional do Trabalho na Recomendação nº 198: a verificação da relação de emprego é realizada com base nos fatos, e não no arranjo contratual.

O que se deve buscar, com base na realidade econômica da relação, é a constatação da existência da dependência econômica, ou seja, se o trabalhador está “economicamente dependente a um empregador para trabalhar” (“economically dependent on an employer for work”). Nesse caso, ele será um empregado. Se, por outro lado, o trabalhador está realizando um negócio por e para si próprio (“in business for themself”), ele será um trabalhador autônomo (independent contractor), ou, como dizemos tecnicamente no Brasil, ele é trabalhador por conta própria, e não por conta alheia (§ 795.105, “b”).

Parece muito básico, e é mesmo, pois assim funciona o capitalismo. Mas é muito importante dizermos o básico, pois as pessoas não versadas em direito do trabalho não têm a base suficiente para poder fazer análises mais profundas.

Voltando à norma, ela diz que a dependência econômica “não foca na quantidade de remuneração que o trabalhador ganha, ou se o trabalhador tem outras fontes de renda”, mas sim se, na realidade, para trabalhar o trabalhador necessita se engajar em negócio alheio (§ 795.105, “b”).

Os fatores que indicam a dependência econômica são relacionados ao que chama de economic reality test, que indica múltiplos fatores como ferramentas ou guias para uma análise global da situação. Esses fatores são analisados em seu conjunto, não sendo a ausência de nenhum deles excludente da relação de emprego (§ 795.110, “a”, 1). A lista também não é exaustiva, segundo a norma (§ 795.110, “a”, 2).

O primeiro fator elencado é a oportunidade de lucro ou perda dependendo da habilidade gerencial (§ 795.110, “b”, 1).  Propõe-se verificar se o trabalhador determina ou pode negociar significativamente o preço por seu trabalho; se ele pode aceitar ou declinar trabalho ou escolher a ordem e o tempo de realizar o trabalho; se ele faz marketing ou propaganda ou esforço para expandir seu negócio, e se o trabalhador toma decisões de contratar outros, compra material e equipamento ou aluga espaço para realização do negócio. Se o trabalhador, por sua vez, não tem oportunidade de lucro ou perda, o fator sugere que ele é um empregado. A norma deixa claro que a decisão de trabalhar mais horas ou pegar mais tarefas, quando o pagamento é fixo por hora ou por tarefa, não reflete o exercício de competência gerencial. O que se busca é saber se ele tem realmente um negócio próprio.

O segundo fator são os investimentos pelo trabalhador e pelo potencial empregador (§ 795.110, “b”, 2). O fator verifica quais investimentos realizados pelo empregador são capital e considerados atos de empreendedorismo por natureza. A norma explicita que custos do trabalhador com ferramentas ou equipamento para a realização de uma tarefa custos específicos do trabalho e aqueles que o potencial empregador impõe unilateralmente ao trabalhador não são provas de investimento de capital e indicam a condição de empregado. Os investimentos que são considerados como típicos de empreendedorismo são aqueles que dão base a um negócio independente, como aqueles realizados para aumentar a habilidade de trabalhador realizar diferentes tipos ou mais trabalho, reduzir custos ou aumentar sua margem de mercado. Além disso, o investimento deve ser comparado com aquele realizado pelo empregador, de forma proporcional.

O terceiro fator é o grau de permanência da relação de emprego (§ 795.110, “b”, 3). Se a relação for indefinida na duração, contínua ou exclusiva, há indicação de que se trata de uma relação de emprego. O fator pesa em favor da condição de autônomo se for de duração definida, não-exclusiva, baseada em projeto ou esporádica em um negócio próprio do trabalhador que coloca no mercado seus serviços ou trabalha para múltiplos tomadores. A característica sazonal ou temporária do trabalho não indica a condição de autônomo. Se a falta de permanência é devido às características operacionais de um negócio ou setor particular, o fator não é necessariamente indicador do estatuto de autônomo, a menos que o trabalhador esteja realizando um negócio independente.

O quarto fator é a natureza e o grau de controle (§ 795.110, “b”, 4). Neste indício, a norma considera o potencial controle do empregador, inclusive aquele não efetivamente realizado e que permanece em potência, sobre a performance do trabalho e os aspectos econômicos da relação de emprego. Os fatos relevantes elencados pela norma são: se o empregador determina (ou pode determinar) o horário do trabalhador, supervisiona (ou pode supervisionar) a performance do trabalho ou explicitamente limita a possibilidade de trabalhar para outros. É acrescentado que se o empregador usa meios tecnológicos para supervisionar a performance do trabalho (como equipamentos eletrônicos), ou se reserva o direito de supervisionar ou disciplinar trabalhadores ou realiza demandas ou restrições a trabalhadores que não permitam que trabalhem quando quiserem, a indicação é que sejam empregados. Também devem ser considerados aspectos econômicos, como controle de preços ou tarifas de serviços ou o marketing dos serviços ou produtos do trabalhador, para a verificação da condição de empregado.

O quinto fator a ser verificado é até que ponto o trabalho realizado é parte integrante dos negócios do possível empregador (§ 795.110, “b”, 5). Deve ser verificado se o trabalho do autônomo está integralmente dentro do negócio alheio, ou seja, da atividade econômica do empregador. Se o trabalho é crítico, necessário ou central do negócio do empregador, ele será um empregado.

O sexto fator são as competências e a iniciativa (§ 795.110, “b”, 6). Se o trabalhador aplica habilidades especializadas para realizar o trabalho e se essas competências contribuem para a realização de uma iniciativa própria de negócio, estaremos diante de um trabalhador autônomo. Se o trabalhador não usa habilidades ou conhecimentos especiais e se depende de treinamento do empregador, ele é empregado. O contrário não indica necessariamente um trabalho autônomo, porque tanto empregado quanto trabalhador autônomo podem ser trabalhadores especializados. O que indicaria a existência do fator é a conjugação das competências especializadas com a realização de uma iniciativa própria de negócio, aí sim caracterizando um trabalho autônomo.

Com toda essa clareza, não é muito difícil ver quando um trabalhador é autônomo ou se é empregado. Um médico pode ser ou não empregado. Ele é autônomo quando realiza sua função como negócio próprio, estipulando seu preço, recebendo os pagamentos, formando uma carteira de clientes, organizando sua forma de atender e a quantidade de clientes. Nunca será quando inserido em um hospital, cumprindo plantões ou atendendo pacientes do hospital. Aliás, um mesmo médico pode ser empregado e autônomo ao mesmo tempo, em contratos diversos. A profissão não indica a natureza da relação jurídica. Um engenheiro pode contratar como autônomo para realizar projetos para o mercado, mas não será autônomo se trabalhar para uma construtora de forma permanente. Um trabalhador em plataforma digital será autônomo se ela for utilizada para ofertar seu serviço no mercado. Será empregado se a plataforma digital ofertar e garantir, em verdade, um serviço próprio, como de transporte de pessoas e mercadorias, estipulando o preço, resguardando para si os clientes, controlando a qualidade e disciplinando os trabalhadores. Não é difícil, mas essa verificação nunca poderá ser feita em abstrato, mas sempre observando a realidade.

Assim, o governo estadunidense, preocupado com o grave problema, vai completamente na contramão da jurisprudência que tem se formado no Supremo Tribunal Federal. Aqui, pretende-se impor a forma sobre a realidade, negando a existência do grave problema e desprezando todo o direito social resguardado na Constituição e em tratados internacionais assinados pelo Brasil. O STF quer fechar os olhos para a realidade, no estilo Não Olhe para Cima, tentando afirmar inexistência de vínculo empregatício em abstrato, o que é algo afrontoso ao direito do trabalho em todo o mundo. O STF é, nesse sentido, negacionista, e a pretensão que se avizinha de se afastar de todos os países civilizados do mundo é perigosa para o projeto de um país civilizado desenhado na Constituição da República. Tomara que abra os olhos para os exemplos vindos dos países centrais do capitalismo e não nos reserve um futuro de periferia precária afastada completamente da garantia dos direitos humanos mais basilares.

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A norma, em sua integralidade, com suas razões, está aqui.

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