Estudo financiado por associação de plataformas digitais revela remuneração abaixo do salário mínimo para entregadores e motoristas

Na divulgação, entidade que representa Uber, 99, Ifood e outros deu destaque a valores elevados de remuneração, mas uma análise da própria pesquisa demonstra que, na média, motoristas recebem entre R$ 1.056 e R$ 1.672 por mês, após custos, enquanto entregadores recebem entre R$ 480 e R$ 816.

Um estudo divulgado no mês passado, encomendado pela associação que representa as empresas 99, Uber, Ifood e Zé Delivery, tratou de questões como a jornada de trabalho e a remuneração dos motoristas e entregadores atuantes nas plataformas. Realizada pelo CEBRAP, a pesquisa foi amplamente divulgada na imprensa brasileira, com destaques que afirmavam que a remuneração média dos motoristas ficaria entre R$ 2.925 e R$ 4.756 por mês, enquanto a dos entregadores, entre R$ 1.980 e R$ 3.039 por mês. Porém, o próprio estudo revela que esta não é a realidade da maioria dos trabalhadores que atuam nessas plataformas.

Com graves inconsistências metodológicas, os resultados do estudo foram recortados na nota assinada pela Associação Brasileira de Mobilidade e Tecnologia (ver abaixo), que apresentou a “renda líquida” dos profissionais como se eles atuassem 40 horas semanais em corridas efetivas. Contudo, os próprios dados fornecidos pelas empresas revelam que os motoristas realizam, em média, 22h semanais em corridas efetivas nos aplicativos, enquanto os entregadores, 12h semanais. Como a base de cálculo da remuneração na pesquisa é o tempo em efetivo atendimento aos clientes, na prática, a remuneração média é bem menor do que foi divulgada, chegando inclusive a ficar abaixo do salário mínimo.

Trecho da nota divulgada pela AMOBITEC em 12/04/2023

Pesquisadores do grupo Direito do Trabalho no Século XXI (TRAB21), da Universidade Federal do Rio de Janeiro, encontraram a contradição no relatório completo da pesquisa, que somente foi divulgado um mês depois do seu lançamento. Com os dados do estudo, é possível fazer uma estimativa mais realista dos ganhos médios de motoristas e entregadores, levando-se em consideração as médias de horas “em corrida” nos aplicativos. Se os motoristas conseguem realizar, em média, 22 horas semanais de corridas, a sua remuneração fica entre R$ 1.056 e R$ 1.672 por mês, dependendo do tempo em que os trabalhadores ficam logados no aplicativo sem realizar corridas (30% do tempo no primeiro caso; 10% do tempo no segundo caso).

Para os entregadores, a situação é ainda mais precária, pois além de uma remuneração menor, eles realizam menos horas em corridas por semana (12 horas, em média). Se considerada essa média, o rendimento mensal desses trabalhadores nos aplicativos fica entre R$ 480 e R$ 816, sempre abaixo do salário mínimo (ver abaixo como foram feitos os cálculos). 

Há, ainda, outros problemas metodológicos no cálculo e na divulgação dos números do estudo. Existe uma impossibilidade lógica de um trabalhador ficar cem por cento de seu tempo em corrida, dado o tempo necessário ao encerramento de uma corrida e o deslocamento até o próximo passageiro, ou o próximo restaurante. Assim, toda estimativa de remuneração com 100% do tempo em atendimento aos clientes é falsa, apesar de ter sido divulgada. Mesmo a estimativa de 10% de tempo entre corridas é bem distante da realidade, principalmente em relação aos entregadores.

A pesquisa, assim, inverte a lógica: ao invés de estimar o ganho pelo tempo “logado” na plataforma, que é o tempo de trabalho na prática, observou o ganho somente no tempo de “corrida”, acrescentando faixas arbitrárias para o tempo total (0%, 10%, 20% e 30% sem corridas). É curioso que o estudo apresente essas estimativas, quando as plataformas dispõem dos dados reais de horas logadas e horas em corrida dos trabalhadores, mas só disponibilizaram os dados de horas em corridas, como revelado na seção de metodologia.

Outro problema encontrado foi que os custos médios de manutenção dos veículos, levados em conta no cálculo das remunerações, estão inexplicavelmente abaixo do que os trabalhadores apontam em questionário aplicado pelo próprio CEBRAP. Além disso, como o estudo divulga apenas as médias (e as empresas não disponibilizam suas bases de dados publicamente), não é possível estimar quantos profissionais atingem as 40 horas semanais em corrida divulgadas e quanto tempo eles têm que trabalhar para atingir esse número.

Trabalhadores de plataformas digitais realizaram greve na segunda-feira, 15/05/2023, reivindicando justamente remunerações maiores para as corridas. As empresas, provavelmente, irão divulgar novamente os dados distorcidos, para tentar contrariar os argumentos de que pagam pouco. Também chama a atenção esses números serem divulgados em evento realizado com a presença de várias autoridades, no momento em que o governo federal inicia as discussões para regulamentar o trabalho em plataformas digitais.

As plataformas digitais, bem como o CEBRAP, devem abrir os dados e explicitar seus números para o devido controle científico da pesquisa divulgada.

Como foram feitos os cálculos pelo TRAB21?

Quem acessa o estudo completo no site do CEBRAP encontra estimativas de jornada semanal e de ganhos dos trabalhadores nas plataformas digitais. Mostraremos aqui o exemplo dos motoristas. Um pesquisador do TRAB21 multiplicou o tempo médio em corrida por semana (22h), revelado na tabela 8, pela remuneração por hora após custos de manutenção, revelado na tabela 10. O cálculo foi feito da seguinte forma:

(Tempo médio em corrida por semana – 22h) x (Número de semanas por mês – 4) x (Ganhos médios por hora) = Remuneração mensal da média dos motoristas

Os cálculos resultaram no seguinte:

MOTORISTAS

Estimativa de ganhos líquidos – MotoristasValor da hora pós custos Tempo médio em corrida por semanaNúmero de semanas no mêsGanho líquido mensal
Tempo sem corridas 0%*R$ 22224R$ 1.936*
Tempo sem corridas 10%R$ 19224R$ 1.672
Tempo sem corridas 20%R$ 15224R$ 1.320
Tempo sem corridas 30%R$ 12224R$ 1.056

*A estimativa com tempo sem corridas em 0% foi desconsiderada porque não se aplica à realidade, já que os motoristas e entregadores teriam que estar realizando corridas em 100% do tempo em que estão logados no aplicativo, o que é impossível, apesar de ter sido divulgado no estudo.

ENTREGADORES

Estimativa de ganhos líquidos – EntregadoresValor da hora pós custos Tempo médio em corrida por semanaNúmero de semanas no mêsGanho líquido mensal
Tempo sem corridas 0%*R$ 17124R$ 816*
Tempo sem corridas 10%R$ 14124R$ 672
Tempo sem corridas 20%R$ 12124R$ 576
Tempo sem corridas 30%R$ 10124R$ 480

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